São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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Paradoxos

ROBERTO CAMPOS

Positivamente, estamos mesmo numa época de paradoxos. Faz alguns dias, a imprensa encheu as primeiras páginas com o sensacional diário do ex-embaixador soviético Fomin, que transmitia a seus superiores, no Kremlin, a informação de que o então presidente João Goulart estava preparando um golpe de Estado, com o fechamento do Congresso. Ouviram-se de alguns sobreviventes das nossas inefáveis esquerdas alguns guinchos muito sem graça, desses de frangote que está mudando a voz. Mas, logo em seguida, veio a público a mesma informação, desta vez de parte da CIA. Um caso de rara unanimidade dos informantes das duas superpotências. E, por favor, não me digam que, nos idos de 1964, elas estavam alegremente colaborando às nossas custas...
É preciso corrigirmos urgentemente a grande fraude das esquerdas, cuja velha linha -mentir, mentir sempre, que acabará restando alguma coisa- procurou dar por definitiva a versão do regime Goulart como uma situação perfeitamente democrática em pleno funcionamento, e a reação militar de 1964 como um "golpe contra as instituições". Infelizmente, a verdade histórica muitas vezes tarda a vir à tona, porque as informações e os documentos relevantes costumam ficar guardados em arquivos que os governos não costumam abrir ao público. A verdade é que a opção, em 1964, não era entre democracia social e democracia liberal. A opção era entre "autoritarismo de esquerda" -um Estado Novo com sinais trocados-, sob a liderança de Goulart ou Brizola, e um "autoritarismo de direita", envergonhado e biodegradável. Ao contrário das ditaduras de esquerda, capazes de longa sobrevida, como o revelam os exemplos de Fidel Castro e Kim Il Sung...
Em matéria de repressão, somos aprendizes de escoteiros. Os atentados e a guerrilha de esquerda mataram quase uma centena de soldados, policiais e outras pessoas que apenas cumpriam o seu dever. E os governos, de 64 a 84, quase 21 anos, têm a responsabilidade por pouco mais de 160. Não chegam a 8 por ano. Média que envergonharia qualquer Comando Vermelho da vida, e é quase ridículo por comparação com a matança de qualquer fim-de-semana normal e pacífico do Rio ou de São Paulo... O supostamente malvado regime aposentou alguns professores e deixou completamente livres as publicações de esquerda -basta compilar qualquer lista de publicações desse tempo. Emitiu, é verdade, alguns decretos-lei. Agora chamam-se medidas provisórias e representam, parece, o supra-sumo da democracia em operação...
Nossa inocência repressiva seria certamente desvirginada pelas nossas esquerdas, se houvessem tido a oportunidade. O primeiro e grande modelo, naturalmente, teria sido o da falecida pátria do socialismo, que chamava a si mesma União Soviética. As cifras variam, mas as melhores estimativas parecem estar em mais de 30 milhões de vítimas, até a Segunda Guerra. Só na reforma agrária foram liquidados, de uma ou de outra maneira, algo entre 8,5 e 14 milhões de agricultores -naturalmente "inimigos da classe". Da China, não se sabe ao certo. A unidade de conta é sempre o milhão. Só na bagunça da "Revolução Cultural" foram mortas mais de 1 milhão de pessoas. Pol Pot, do Khmer Vermelho, o Camboja -um pequeno país de camponeses- matou mais de 1 milhão no seu esforço (indubitavelmente consciencioso) de criar o novo "homem socialista". Mengistu, da Etiópia, imaginou uma saída original para superar as limitações do subdesenvolvimento e, além de bala, usou a fome para acabar com as centenas de milhares de camponeses, que não respondiam com o necessário entusiasmo aos gloriosos apelos do socialismo.
Mas, para não ficarmos muito longe, temos o socialismo moreno de Fidel Castro. Este é recebido por vários Poderes da República com mostras públicas de comovido respeito. Que é competente, não há a menor dúvida. Desde 59 no poder absoluto, hoje um recorde mundial! Como Cuba é um país tropical, alegre, com lindas praias, rum e boleros, a coisa no paredón foi bem mais suave. Só se fuzilaram alguns milhares. Algo como, digamos -tendo em conta a diferença de população-, fuzilar uns 70 mil "inimigos do povo" aqui na pátria amada... Em Cuba não se escreveria um livro como "Tortura Nunca Mais", pois Fidel considera a pessoa humana um detalhe desprezível na confrontação ideológica.
Isso me lembra a famosa história do "ouro de Moscou". Até que eu, pessoalmente, gostava do velho Prestes. Fiquei um pouco chateado quando os arquivos soviéticos recém-abertos confirmaram que existiu, mesmo. Mas já devia estar preparado, porque nenhuma visão totalitária do mundo -e a socialista o é inerentemente, porque já traz embutida uma noção dogmática de como as pessoas devem ser e pensar- pode permitir-se qualquer espécie de escrúpulo.
Nunca adianta muito tentar corrigir versões distorcidas de eventos históricos, porque elas são, por princípio, descartáveis, uma vez usadas para os fins com que foram propostas. Mas fique o registro. Porque, se um intelectual então respeitado, como Sartre, se abastardou sujamente pelo seu silêncio diante dos crimes do stalinismo, que podemos esperar das versões pitecantrópicas nativas aqui das terras de Macunaíma?
O comunismo foi a outra face do totalitarismo de direita, ambas reações desordenadas e enlouquecidas a um mundo que, com a traumática experiência da Primeira Guerra, parecia irremediavelmente irracional e absurdo às gerações desse tempo. Como cangalhas que se equilibram, pesando uma de cada lado, essas duas visões deformadas alimentaram-se e justificaram-se reciprocamente. E, como ser desenvolvido é, antes de mais nada, morar na periferia da racionalidade, por um bocado de tempo continuamos usando idéias que, na origem, já há muito passaram do prazo de validade.
Estamos no momento presente vivendo uma outra experiência paradoxal. Os trabalhadores do setor privado compõem com os capitalistas, sendo raras as greves, pois o patrão é levado a ceder, para evitar os prejuízos de paralisação, e os trabalhadores paralisam pouco, com medo do desemprego. As greves são hoje contra o Estado. Escudados na estabilidade do emprego e ignorando, ou fingindo ignorar, que os contribuintes não estão dispostos a pagar mais impostos para sustentar a burocracia (que consumia 4,4% do PIB em 1990 e 5,8% do PIB em 1995), os funcionários públicos deixam de prestar serviços essenciais.
Com isso, conseguem paradoxalmente três resultados. Tornam claro que é necessário acabar-se com a estabilidade, para que o risco do desemprego possa atuar como fator disciplinar e moderador. Evidenciam que há funcionalismo em excesso, pois o governo consegue operar mesmo com contingentes reduzidos. E estranhamente castigam precisamente os mais pobres, pois o grevismo é mais acentuado nos setores de saúde, educação e previdência social. O sofrimento periódico dos desvalidos nas filas é uma das poderosas razões em favor da privatização da previdência social, num modelo competitivo, que permita ao assegurado optar entre vários prestadores de serviço. Nos monopólios de Estado, a situação é clara: o poder de greve se transforma em poder de chantagem, como os petroleiros nos demonstram periodicamente, numa lição sempre repetida e nunca aprendida.

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