São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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Zeros à esquerda

MARCELO LEITE

Caruaru, Campinas, Eldorado dos Carajás: a barbárie avança no Brasil. A imprensa assiste a tudo e se cala. Publicar manchetes chorosas sobre o sangue derramado é o mesmo que se calar.
Todos se indignam, mas ninguém se responsabiliza. Os 42 de Caruaru e os 19 de Eldorado amanhã serão notícia de anteontem. Seu destino é o dos 111 do Carandiru, dos 21 de Nova Brasília. O país do futuro tem pressa de esquecer.
O Brasil não quer aprender. Seu passado, recente ou remoto, é moralmente insuportável.
Funcionários crucificados
A imprensa tem muito a ver com isso. Na área da saúde pública e da violência rural ou urbana, a verdadeira notícia deveria vir antes da tragédia. Aquela velha conversa de captar tendências, antecipar os fatos. Ou isso vale apenas para o mundinho fashion e os descolados de Maresias?
Nessa outra praia, jornais e revistas só exibem barrigas. Manchetes jacobinas sobre as terras da Igreja Católica não têm o condão de resolver o problema fundiário. Pesquisas de opinião com usuários não esgotam a avaliação do arrastão arranca-toco de Paulo Maluf na saúde do município e São Paulo. Lágrimas de crocodilo também não farão com que os mortos se levantem.
Pior ainda, jornalistas contribuem para a barbarização do debate público. Basta constatar o papel de correia de transmissão a que se sujeitam na crucificação do funcionalismo público. A alta inquisição tucana nem precisa invocar a maldição -corporativistas!-, pois o baixo clero dos comentaristas políticos já se encarrega de fazê-lo.
Tudo bem, cada um tem direito a sua opinião. Mas é função da imprensa enfiar cunhas nessas unanimidades que vez por outra promove -sempre burras, como queria Nélson Rodrigues. Como usuário de serviços, não tenho simpatia por servidores públicos, mas causa engulhos ver tantos disseminarem a simplificação de que são todos "privilegiados".
Veja o quadro "Salários médios do funcionalismo", publicado na Folha há quatro dias e reproduzido acima. Com exceção da Receita Federal, são vencimentos medíocres, quando não de fome. Não sei se é tão absurdo pleitear aumento de 46,19%, nesses casos.
O governo pode até desconsiderar que pessoas reais têm de viver com esses salários. Os jornais, não. O mínimo que deveriam fazer é mostrar quem são esses servidores, como vivem e o que pensam, por exemplo, da falência do Estado.
É um bocado de gente, mais de meio milhão de pessoas. Parece pouco provável que sejam todos chupins, picaretas e incompetentes, como quer fazer crer a propaganda dos reformistas "enragés".
"Malufolha"
Em São Paulo, a eficiência quase fascista da máquina de comunicação de Paulo Maluf está ganhando a guerra. O maior sucesso da implantação a ferro e fogo do Plano de Atendimento à Saúde (PAS) é o predomínio da versão de que o sistema de atendimento faliu por culpa dos próprios funcionários ("vagabundos", como diz o prefeito).
A pesquisa Datafolha sobre o PAS publicada esta semana revelou um dado importante: a grande maioria dos usuários aprova o novo esquema. Mas é pouco, e está sendo entendida por alguns leitores como uma adesão da Folha ao PAS. Um deles afirmou que o jornal estava se transformando em "Malufolha".
O que jornalistas precisam ter em mente é que há uma terceira parte envolvida, cujos interesses lhe toca representar: a coletividade. É em nome dela que têm de questionar o prefeito e sua clique sobre as consequências futuras do arrastão, mostrar o autoritarismo dos métodos, e não apenas registrar a eficiência que muitas vozes abalizadas consideram efêmera e localizada.
Minhocão liberado
A leitura de alguns textos da Folha sobre as polêmicas iniciativas de Maluf realmente desanima. Esta semana o prefeito saiu-se com um teste de ruído para justificar a reabertura da via elevada conhecida como Minhocão, sua grande -no sentido físico- obra.
A abertura ou "lide" da reportagem "Prefeitura estuda murar o Minhocão", na edição de quinta-feira, nem sequer mencionava o resultado das medições: "A Prefeitura de São Paulo estuda transformar o elevado Costa e Silva, no centro da cidade, em uma espécie de túnel a céu aberto, com muros de dois metros de altura". Abaixo do título, um desenho mostrava os valores medidos, mas sem interpretação alguma.
Compare agora com o lide do texto "Teste no Minhocão refuta teses de Maluf", no concorrente "O Estado de S.Paulo":
"Os números não estão ajudando o prefeito Paulo Maluf na sua empreitada para reabrir o Minhocão durante a noite. Será mesmo muito difícil justificar a medida tomando como base os dados da medição de ruído realizada ontem pelos técnicos da Secretaria de Vias Públicas. O teste acústico serviu apenas para provar o óbvio: com o Elevado Costa e Silva interditado, o nível de barulho na região fica bem mais suportável, ainda que continue acima dos padrões recomendados".
Muitos jornalistas condenarão o texto do "Estado", argumentando que peca pela "editorialização". É o preço a pagar pela coragem de tirar conclusões, correr riscos.

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