São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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Condenados da Terra

JOSÉ LUÍS FIORI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Poucas horas antes de morrer num desastre aéreo quando se dirigia à Croácia para -uma vez mais- "agilizar" o funcionamento da mão invisível do mercado, o ex-secretário do comércio norte-americano Ron Brown, comandou em Lille, na França, mais uma vitória das teses econômicas conservadoras reafirmadas nas conclusões da segunda reunião do Grupo dos Sete para discutir o problema mundial do desemprego.
Frente aos números da Organização Internacional do Trabalho -cerca de 40 milhões de desempregados só nos países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico e algo em torno de 750 milhões de "excluídos" hoje no mundo-, os governos das sete maiores potências econômicas do mundo reafirmaram em uníssono com Brown que a única solução possível passaria pela busca incansável de um "equilíbrio fiscal mundial".
Isto, apesar de, depois de quase 20 anos de hegemonia da "supply-side economics", a diminuição universal das cargas fiscais nacionais não ter sido capaz de reincentivar o investimento e o crescimento econômico, enquanto, por outro lado, o gasto público como porcentagem do PIB cresceu em todo mundo desenvolvido, apesar da significativa queda dos gastos sociais que foram, entretanto, substituídos pelo aumento exponencial dos gastos financeiros.
A história é bastante conhecida. Já faz um quarto de século que, com a falência de Bretton Woods, encerrou-se a "era de ouro" do desenvolvimento capitalista. Logo depois, a vitória neoclássica no campo econômico e dos neoconservadores no campo político consagrou a tese de que a crise mundial vivida a partir de 1973 foi obra das notícias keynesianas e dos compromissos fiscais assumidos pelo Welfare State.
Desde então, esta idéia transformou-se em senso comum e em ponto de convergência das políticas econômicas do mundo capitalista. Com a derrota comunista e o fim da Guerra Fria, transformou-se no dogma que vem orientando uma verdadeira "revanche do capital contra a autonomia política do mundo do trabalho".
A partir daí, as idéias de eficiência, competitividade e equilíbrios macroeconômicos substituíram o consenso keynesiano em torno ao crescimento e ao pleno emprego e passaram a ser os novos totens do pensamento político-econômico internacional. E isto, porque, com o fim do muro de contenção socialista, foram varridas os últimos temores, e o neoconservadorismo se impôs como verdade incontestável, não sendo incomum ouvir os próprios social-democratas repetirem que a solução da crise atual passa pela desregulação do mercado de trabalho, pela redução dos salários e dos direitos trabalhistas e pela desconstrução do estado de bem-estar social.
O que vem se assistindo em Wall Street, como o que se viu recentemente em Paris, seriam manifestações diferentes de um mesmo fenômeno. Nos dois casos, ainda que de ponto de vistas opostos, os capitalistas e os trabalhadores estariam festejando e contestando a mesma coisa: o resultado das reestruturações empresariais induzidas pelas políticas deflacionistas em curso desde o início dos anos 80 nos EUA e na Europa, praticadas em conjunto com a progressiva desregulação dos mercados. Combinação que produziu até agora, como efeito simultâneo e contraditório, uma prolongada desaceleração do crescimento econômico mundial, o aumento do desemprego e um salto gigantesco da acumulação financeira.
As evidências são tantas que até os economistas começam a reconhecer que a "era fordista" foi uma exceção mais do que a regra de um sistema econômico cuja identidade contraditória e excludente está ficando cada vez mais parecida com a do seu retrato feito no século 19 pela "crítica da economia política" de Marx. Talvez por isto também esteja ficando cada vez mais visível a verdadeira natureza da "crise do Welfare State" acusado pelos liberal-conservadores e por uma boa parte dos social-democratas de ser o principal responsável pela crise e a desaceleração da economia mundial que se mantém com altos e baixos há quase 20 anos.
Para eles, hoje, "a recessão mundial é fruto da queda da lucratividade e da competitividade decorrente do aumento dos encargos fiscais e dos direitos sociais consagrados pelo estado de bem-estar". Versão que atualiza a tese conservadora dos anos 60 sobre ingovernabilidade capitalista produzida pelo "excesso de demandas políticas" e de "direitos sociais" conquistados pelos sindicatos e consagrados pelas políticas keynesianas ou social-democratas.
Só que na sua versão contemporânea são os próprios trabalhadores que aparecem, em última instância, como responsáveis pelo seu desemprego: nos termos de um sofisma cada vez mais repetido até entre nós, bastaria que eles abrissem mão dos seus direitos adquiridos para que o número de postos de trabalho voltasse a crescer. Mas, se o argumento e a agenda conservadores são absolutamente claros nesta hora de vingança do capital, como explicar a confusão dos social-democratas frente à sua própria obra?
A obra histórica
Ela começa aparentemente com uma derrota político-intelectual que já se deu nos anos 70. A "New Left" foi desde o início reticente com relação ao Welfare State, fosse por causa do seu excesso de burocracia e centralização, de sua gestão pouco participativa ou mesmo de seus resultados pouco igualitários. Variavam os argumentos de tipo "teórico", mas quase todos os seus críticos acabavam recorrendo ao argumento do "esgotamento fiscal" para explicar a "crise de racionalidade ou de legitimidade" vivida pelo estado de bem-estar social.
Os mesmos argumentos que depois reapareceram, já de forma caricatural, nas sociedades periféricas, em que os salários e as contribuições sociais têm uma participação baixíssima na formação dos preços e em que jamais existiram redes de proteção social equiparáveis às do Welfare State europeu.
Foi por este caminho, aliás, que a social-democracia européia acabou se transformando numa verdadeira ideologia desconexa, à medida que, sobretudo na Europa, passou a desautorizar a sua principal obra histórica, em troca de uma "moeda única" que, na prática, tem se mostrado cada vez mais incompatível com os interesses dos trabalhadores. E, o que é pior, como forma de legitimar esta sua estranha conversão às teses de seus adversários históricos, os social-democratas foram obrigados a uma ginástica intelectual e publicitária que os levou a inscrever na sua bandeira "reformista" as mudanças agora propostas pelos liberal-conservadores.
Posição que vem colocando, já há algum tempo, a social-democracia européia numa disjuntiva política extremamente difícil e desafiadora, pois afinal o Welfare State foi sua principal contribuição à história do século 20, e sua destruição poderá significar o seu próprio desaparecimento. Mas só uma revisão radical do seu diagnóstico da crise do Welfare poderá recolocá-los como uma alternativa real ao liberal-conservadorismo dominante dentro do quadro político europeu ou mundial.
Moeda única
Em primeiro lugar, porque hoje, 20 anos depois de deflagrada aquela discussão política e intelectual, é possível ver com muito mais nitidez que as "crises fiscais dos Estados" têm muito pouco a ver com "o excesso de demandas dos trabalhadores" e tudo a ver com acontecimentos e decisões que, a partir de 1973, alteraram radicalmente a face do capitalismo, solapando as bases tributárias do keynesianismo, multiplicando as dívidas públicas e submetendo as margens de liberdade das políticas econômicas e sociais ao veredito dos mercados financeiros.
Antes, foi a ruptura da paridade das moedas nacionais com o dólar que decretou o fim dos acordos de Bretton Woods, jogando a economia européia num surpreendente processo de estaginflação, que a obrigou a um ajustamento nos planos macro e microeconômicos responsáveis pela expansão simultânea do desemprego e da carga social do gasto público.
Depois, em 1979, foi a alta das taxas de juros mundiais, iniciada por decisão unilateral da autoridade monetária norte-americana, responsável por uma nova e profunda recessão das economias européias. Taxas que, mesmo quando reduzidas logo à frente, permaneceram altas em toda a década de 80, exponenciando as dívidas públicas e submetendo governos e bancos centrais à senhoriagem e/ou chantagem de credores privados e novos emissores endógenos de moeda.
Fenômeno que, no caso europeu, se combinou -de forma perversa para as políticas sociais- com a criação, também em 1979, do seu sistema monetário unificado em torno à hegemonia do marco alemão e com a adoção, desde então e de forma cada vez mais generalizada, das chamadas políticas deflacionistas. E, finalmente em 1992, os europeus, ao assinarem o Tratado de Maastrich, estabelecerem condições macroeconômicas para a criação de sua moeda única tão rígidas, que tiraram dos governos nacionais qualquer margem de manobra e, na ausência do risco comunista, impuseram o ônus de sua implementação quase integralmente aos trabalhadores.
Em segundo lugar, os social-democratas estão obrigados hoje a repensar de forma crítica as razões pelas quais os resultados das políticas deflacionistas sancionadas pelos mercados financeiros globalizados seguem apresentando resultados tão medíocres. Pois, se é verdade que a inflação tem estado sob controle, o desemprego disparou, os déficits e as dívidas públicas se mantêm e ultrapassam em todos os países, menos no castelo de Luxemburgo, os níveis exigidos pelos acordos de Maastrich.
Em terceiro lugar, os social-democratas deveriam assumir plenamente que, se estas políticas não forem alteradas, o que se vai assistir é a multiplicação sem limites dos desempregados, dos excluídos, dos "condenados da Terra", sem que jamais se alcance equilíbrio fiscal algum.
E, portanto, o que os conservadores chamam de "custo social" da reestruturação ou ajuste das economias nacionais às condições de competitividade global não seriam apenas efeitos transitórios, seriam permanentes e crescentes e resultariam da armadilha circular imposta pelas políticas deflacionistas, quando propõem simultaneamente a estabilidade e paridade das moedas, a manutenção do equilíbrio fiscal e o aumento da competitividade. E não parece difícil perceber que, à medida que aqueles dois primeiros objetivos levam a um crescimento econômico medíocre, a responsabilidade pelos equilíbrios macroeconômicos se transfere de maneira crônica e impotente para o campo do corte dos gastos fiscais que já estão a esta altura no seu limite, pressionados pelos altos juros que a dívida pública enfrentou nos últimos 15 anos. Isto, na hora em que os novos ganhos de competitividade vão sendo conquistados, também, por meio da desoneração fiscal e do aumento do desemprego, o que coloca o terceiro objetivo em choque com os dois primeiros a reforçar simultaneamente uma diminuição da carga fiscal e um aumento do número de seus dependentes, numa circularidade acumulativa e sem fim.
Fenômeno que tem ocorrido de forma paradigmática na Europa, mas que transcende a realidade européia projetando-se sobre o mundo como a principal ameaça ao avanço de uma verdadeira "democracia substantiva".
Por tudo isto, talvez o que mais esteja faltando aos social-democratas é a coragem de retomar os seus compromissos originários e assumir plenamente que, com todas as suas falhas, o Welfare State segue sendo a mais ambiciosa e bem sucedida construção republicana de solidariedade e proteção social. E, nesta direção, se não quiserem se distanciar definitivamente dos "condenados da Terra", apoiando políticas rigorosamente anacrônicas e reacionárias, talvez devessem se concentrar na busca de alternativas políticas viáveis e progressistas dentro deste novo mundo mais globalizado, partindo, pelo menos, da análise do que poderia ser o conteúdo propositivo concreto daquilo que J. Galbraith chamou recentemente de "neo-keynesianismo global".

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