São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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O amigo de Wittgenstein

Keynes analisou fundamentos da economia da informação

GILSON SCHWARTZ
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Crédito nos negócios é como lealdade para com um governo. Deve-se contar com o que se pode encontrar dele, e trabalhar com isso se possível. (...) Argumentos de efeito para convencer são dispensáveis justamente para pessoas que precisem se convencer. Da mesma forma, um sistema imenso de crédito, fundado sobre o Banco da Inglaterra como pivô e base, existe atualmente. O povo inglês, e os estrangeiros também, confiam nele implicitamente. Todo banqueiro sabe que se tiver de provar ser digno de crédito, por melhores que sejam seus argumentos, terá de fato perdido seu crédito: mas o que temos não existe quaisquer provas. O todo repousa sobre uma confiança instintiva gerada pelo uso e pelo tempo."
Walter Bagehot (1873)

O ponto de partida de toda a obra de Keynes é um fenômeno econômico concreto, que os economistas ingleses começaram a debater já no final do século 19: o das "regras do jogo" de um padrão monetário (o Padrão Ouro ou "Gold Standard"). De um lado, a crença em mecanismos automáticos de ajuste, a crença na capacidade de o mercado cuidar de si mesmo, como um objeto sujeito às leis da natureza. De outro, a ênfase nas regras humanas, falíveis e mutáveis como tudo o que é social.
Keynes alinhou-se a essa segunda visão de mundo em que predomina a percepção de que a lógica econômica é "policy-oriented". Fazendo a crítica a toda e qualquer visão da economia sem política, Keynes busca uma teoria da política econômica em substituição tanto à economia política clássica quanto à economia pura.
Nesse sentido, a economia e seu estudo devem abrir mão da busca de um "fundamento" (como o trabalho, a tecnologia, o Estado ou o mercado) para que se abram ao debate prático sobre a fragilidade de todo fundamento possível. É nesse sentido que a realidade econômica mostra-se também como uma realidade comunicativa ou informacional, epistêmica ou linguística, o que abre espaço para um diálogo com um dos mais inquietantes filósofos contemporâneos, Ludwig Wittgenstein (1889-1951). Afinal, Keynes também questionou os limites da linguagem, do cálculo e do formalismo na teoria econômica.
Keynes e Wittgenstein foram contemporâneos e íntimos, um importante e jovem opositor de Keynes no campo da probabilidade (Ramsey) foi também um tradutor para o inglês das obras em alemão de Wittgenstein, o impacto intelectual de Wittgenstein em Cambridge foi suficientemente forte para permitir que seus dramas pessoais e lógico-filosóficos fossem discutidos e compreendidos com algum detalhe por outros célebres alunos de filosofia da matemática como Keynes.
Tanto em Keynes quanto em Wittgenstein as regras, o normativo, o convencional, o institucional e, de modo geral, o público saem da condição de resíduos pressupostos, mais ainda na medida em que na vida prática são comuns as situações que "escapam à lógica". Do capitalismo acumula traumas e atos falhos tão suscetíveis a terapias quanto a linguagem humana, cuja gramática, para Wittgenstein, é sobretudo um exercício terapêutico que ele analisava por meio dos "jogos de linguagem".
Ocorre que nas duas matrizes antagônicas do pensamento econômico moderno (que poderíamos caricaturar como economia política clássica e economia pura), a política e, em particular, a política econômica foram às vezes escandalosamente amputadas em nome de formas variadas de objetividade científica -sempre em busca de uma argumentação que se pretende puramente lógica e que se supõe capaz de guardar a devida distância das "questões normativas" ou da "ideologia burguesa".
No marxismo, pretende-se ter uma vacina contra a chamada economia vulgar. No marginalismo, na ortodoxia neoclássica, houve sempre uma pretensão análoga, neste caso definida como autonomia da economia positiva que sabe exatamente onde começa o campo normativo. A "lógica do capital" e as "leis da acumulação" de inspiração marxista disputam com a "lógica do mercado" e as "leis de oferta e procura" a primazia enquanto formas adequadas à percepção da realidade econômica.
Tanto o marxismo como o liberalismo vêem na sociedade capitalista um momento limite da operação de uma norma. A tradição marxista procura uma etapa posterior e, de preferência, "superior" à norma existente. A tradição liberal festeja a realização sempre pressuposta de um ideal de equilíbrio, que assim assume a condição de norma quase "natural". Ainda que de modo antagônico, as duas tradições vêem na ordem capitalista um ponto final.
Keynes coloca as duas tradições antagônicas de cabeça para baixo: o capitalismo liberal (politicamente, ou seja, democrático), não necessariamente ordenado, é a cada momento um novo início, é a reiteração de inícios e a abertura de possibilidades cujo teor só faz sentido através de formas econômicas e institucionais de negociação estratégica.
A linguagem (ou momento discursivo, informacional, comunicativo) que resume e reabre recorrentemente esse jogo negocial é a política econômica. Dessa perspectiva a política econômica é sempre um problema aberto pela própria lógica econômica e não uma suposta "aplicação" de um modelo teórico (que pretenderia ao mesmo tempo "interferir" nos mecanismos econômicos e se apresentar retoricamente como simples extensão dos mecanismos de mercado). Novamente lembra Wittgenstein, que problematizou essa relação entre a lógica e sua aplicação necessária.
A história do pensamento econômico pode ser relida como a sucessão de teorias econômicas que se prestaram sempre a ser a demonstração racional da "aplicabilidade" de receitas para problemas estratégicos historicamente cruciais. Ou seja, a prática busca a teoria, na medida em que se indaga pela "legalidade" de seus pressupostos, pleiteando legitimidade e racionalidade para as regras comportamentais que ao mesmo tempo supõe e sugere.
A teoria de Keynes é uma formulação que torna explícita essa vocação e compromisso da prática a ser "aplicação" de uma "teoria geral" que, a rigor, é sobretudo a projeção de regras cuja validade efetiva, "ex post", é tão importante quanto a possibilidade de aumentar a confiança na própria projeção ou modelo, "ex ante". Daí o lugar central da "persuasão" na "teoria geral" de Keynes.
Persuasão, confiança, convenções: elementos "extralógicos" essenciais na lógica de seguir regras. A confiança, como o crédito, é uma forma de contradição.

Este artigo é uma versão resumida, feita pelo autor, da "Introdução" a "O Capital em Jogo - J.M. Keynes e a Lógica da Política Econômica", novo livro de Gilson Schwartz (no prelo).

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