São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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A gênese dos clássicos políticos

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não se pode pensar a política moderna, que nasce em fins da Idade Média com os Estados Nacionais ou no fim do século 18 com as revoluções democráticas americana e francesa, sem conhecer seus alicerces medievais e renascentistas. Esta foi a razão para Quentin Skinner, professor de Cambridge, escrever "As Fundações do Pensamento Político Moderno", que finalmente aparece em português.
Um esclarecimento, aqui: por que traduzir o inglês "foundations" por "fundações" em vez de "fundamentos", como se fez em espanhol? As duas opções são válidas, mas a primeira é melhor. Porque não se trata apenas de examinar fundamentos que continuam presentes, mas de ver como a política moderna foi sendo fundada, inventada. O passado, se está presente, é só porque foi inovador, fundador.
São dois os referenciais que Skinner -autor de obras sobre Hobbes, que merecem ser traduzidas, e de um "Maquiavel" (Brasiliense) que Maria Lúcia Montes verteu alguns anos atrás -emprega para pensar as fundações. O primeiro é a Renascença, que começa, como se sabe, já pelo século 13 e se estende até o 16. O segundo é a Reforma, mais intensa, porque se concentra no espaço de algumas décadas.
A Renascença de Skinner não é a banal redescoberta do homem e dos clássicos depois das longas trevas medievais. Ela começa com o anseio das cidades-Estado italianas, no século 12, por se libertarem do imperador e do papa -o que requer uma nova doutrina da liberdade. Um povo livre decide seu destino em assembléias, nas quais a oratória é fundamental: daí a importância da retórica, na lenta recuperação dos clássicos da Antiguidade.
Mas o ponto que Skinner ressalta é a argumentação de seus autores. Ele não se limita, como fazem os historiadores tradicionais da filosofia, a cotejar conceitos. Mostra como os conceitos se ordenam em argumentos, e como estes são retomados pelos sucessivos pensadores. Uma história da filosofia política é a história da construção dos argumentos e também a de uma fortuna crítica (penso, apenas, que Skinner talvez devesse salientar mais os desvios, o infortúnio crítico, os erros não-intencionais, mas significativos).
É por aí que ingressa a história em sua obra -o que é desejável e mesmo necessário, tratando-se de filosofia política. Para Skinner, o melhor modo de avaliar o que um autor disse é confrontando-o com seu tempo e seus leitores. Por exemplo, não entenderá "O Príncipe" quem esquecer que no século 14 existia um gênero literário de conselhos a príncipes, o qual Maquiavel vem contestar.
Esses textos medievais de aconselhamento, os "espelhos dos príncipes", procuravam pregar-lhes moral. Já Maquiavel quer ensinar-lhes "coisa que seja útil", como diz. Antes dele se falava de reinos que nunca existiram, davam-se conselhos moralmente bons, mas desastrosos na prática. Maquiavel agora propõe tratar dos Estados e dos homens "como realmente são". Mas daria para entender essa inovação, pergunta Skinner, sem conhecer o moralismo que ela critica?
Evidentemente, esta tese de Skinner não é consensual. Pode ser criticada por aqueles que lêem a história da filosofia como sendo pouca história, isto é, apenas como a série das grandes doutrinas, sem maior vínculo com seu tempo. Essa é uma crítica banal, contudo.
A crítica séria pode vir daqueles que, dando importância à história em matéria de filosofia política, consideram porém que também vale a história "posterior" à obra. Penso no livro de Claude Lefort sobre Maquiavel ("Maquiavel, o Trabalho da Obra", ainda inédito em português), que sustenta que as riquezas de uma obra, como a de Maquiavel, foram eclodindo com o passar dos tempos. O tempo que as mede não é o da autoria, mas o do trabalho interminável -ainda nosso- de leitura.
Essa polêmica só mostra, está claro, a riqueza do livro de Skinner. Ele propõe interpretações novas, e densas, para os clássicos do pensamento político -por exemplo, a "Utopia" de Tomás Morus. Retoma a melhor pesquisa recente sobre a Renascença. Mas talvez o mais novo, para o leitor interessado nos grandes textos de referência da política ocidental, seja a parte sobre a Reforma.
Talvez porque a filosofia política moderna é leiga, esquecemos a importância política dos clássicos da religião, e em especial a dimensão em que as Reformas protestantes e a Contra-Reforma católica trataram de questões de poder. Ora, é nessa parte -mais extensa que a da Renascença- que Skinner causa maior impacto a seu leitor.
O autor divide a era da Reforma em três tópicos. No primeiro, articula o absolutismo com a religião luterana. Aponta o papel que a nova fé cumpriu na súbita autonomia de tantos principados da Europa do norte e do leste: em poucas décadas, vários reis, dos escandinavos ao inglês, adotaram uma religião que os livrava da tutela do papa.
Num segundo conjunto de capítulos, Skinner trata da resposta católica, mas negando-se a vê-la como mera reação. A Contra-Reforma aposta no constitucionalismo. desta forma, ela pode até gerar uma perspectiva radical, com Francisco Suárez, saudado por alguns leitores como "o primeiro democrata moderno". Mas também há um constitucionalismo absolutista, que se pode ler no mesmo Suárez. Vê-se que, mais do que a coerência de um autor, o que Skinner procura é a multiplicidade de seus argumentos.
Finalmente, o mais ignorado de nós, o pensamento calvinista. É a mais radical das grandes doutrinas religiosas do século 16 (deixando de lado, é claro, os anabatistas, que não chegaram a ter relevância comparável). O importante, aqui, são o dever e o direito de resistir.
Os luteranos podiam, depois que tantos príncipes alemães e nórdicos deram caráter estatal à nova fé, dar-se bem com o poder oficial. O mesmo valia para os católicos, com o duplo apoio de Roma e dos reis, sobretudo no sul e oeste da Europa.
Mas os calvinistas tinham menos apoio. Contavam com a república de Genebra, contariam mais tarde com a Holanda, na Escócia lutavam contra a rainha Mary Stuart e tentavam tornar a França livre para sua religião. Como, tendo tão pouco apoio e tantas guerras a travar, discutem eles as teorias políticas?
Aqui Skinnner tem suas melhores páginas. Seria facílimo reduzir as teses calvinistas a mera ideologia, que justificaria necessidades práticas. Aliás, é por receio desse resultado que tantos historiadores da filosofia, mesmo política, evitam debater a história: eles temem que o "contexto" engula o "texto". Nosso autor, porém, não faz nada disso.
Numa época tão instável, em que alternam a tolerância e o massacre, o absolutismo do rei e o constitucionalismo, os calvinistas (ou seu nome francês, "huguenotes") são responsáveis pelo avanço da idéia de revolução popular. Esta não é fácil de se defender. A primeira reação dos próprios huguenotes após o massacre de São Bartolomeu, em 1572, é moderada: só resistem à Coroa, dizem, porque foram forçados a isso.
Mas nos 15 anos que se seguem, idéias mais radicais se formam. O calvinista escocês George Buchanan atribui ao povo a soberania. O jesuíta espanhol Mariana nega poder absoluto ao príncipe. A união do calvinista com o jesuíta pode soar curiosa -estão nos extremos do conflito religioso da época-, mas é dela que virá o ataque devastador de John Locke, no final do século 17, ao absolutismo régio.
As fundações terão cumprido seu papel, e nada é mais instrutivo do que o fato de Skinner encerrar sua obra com duas passagens complementares, uma sobre a defesa da revolução popular, outra sobre o surgimento da palavra "Estado". O Estado e a revolução: talvez esse par de opostos, que em começos do século 20 servirá de título a um livro-manifesto, sintetize a política moderna.

A OBRA
As Fundações do Pensamento Político Moderno - de Quentin Skinner. Trad. de Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 72, SP, CEP 04532-002, tel. 011/866-0801). 728 págs. R$ 45,00.

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