São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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Leia um conto inédito do escritor e crítico Modesto Carone

MODESTO CARONE
MODESTO CARONE

Saio pela calçada escura e chego à esquina da ladeira central. Ônibus e caminhões levantam o pó de asfalto que fere a vista e ao desviar a cabeça vejo esculpido no prédio ao lado o ano do meu nascimento. Os números recortam um ângulo da fachada e as lascas de mica brilham como uma ironia diante dos faróis. Corto a rua em direção ao largo e paro em frente ao teatro que agora serve à prefeitura: minha avó está subindo os degraus de entrada com o casaco pendurado no braço. O primeiro impulso é chamá-la mas ela vira o rosto e inclina o ombro para cochichar alguma coisa no ouvido da filha. Sem olhar para o beco à esquerda volto-me para o fim da rua e antes de tomar a última transversal ouço a badalada das onze no relógio da torre. A essa altura o largo está quase deserto e pelas frestas da folhagem é possível sentir os respingos da fonte que se ergue em silêncio e traz até a pérgola um perfume recente de jasmim. Deixo o banco de pedra e ao endireitar o corpo avisto pelo canto dos olhos a adolescente de vestido verde que escorrega no portão da casa e mostra um pedaço de coxa que reluz como um peixe assustado. Estou diante do sinal de uma alameda enfeitada de lanternas e os ônibus e caminhões levantam a poeira preta que se deposita na pele. Decido descer e com o corpo embalado pela inclinação passo defronte à fachada do colégio em que freiras de cinza educaram minha irmã de feições judias. Ela pisa sobre os paralelepípedos que cintilam ao sol e sorri com a ponta dos lábios enquanto leva a mão à boina vermelha que contrasta com a blusa de cambraia branca. Termina ali a ruela asfaltada que dá para o vulto azul da catedral ao fundo: lá passei os primeiros anos entre tios e avós e mais tarde conheci como uma lembrança viva de amêndoas na garganta o peso do trabalho obrigatório. Quase sem perceber entro no cruzamento ainda dominado pela cúpula de mármore cor-de-rosa construída por um comendador. A estação de trem está próxima e para alcançá-la escolho o caminho de cascalho entre as mangueiras: os galhos formam arcadas baixas que estreitam a sombra e por alguns minutos só ouço meus passos no escuro. A fachada da estação está iluminada -uma aura amarela emerge do abrigo de entrada e invade o ponto de táxi vazio. Subo a escada que agora parece menor e passo ao hall inundado de néon. À direita e à esquerda ficam as bilheterias esmaltadas, à frente o portão de ferro batido e no alto o balcão de madeira sobre o qual se abrem os vitrais. Atravesso a catraca que o porteiro de boné azul gira sem mover a cabeça e piso na plataforma de cimento. Meus passos ecoam sob a armação de aço quando me aproximo do leito da ferrovia. Os trilhos refletem os holofotes da locomotiva que está chegando e os apitos rasgam uma nuvem de vapor: meu pai salta do vagão de passageiros com uma pasta de couro na mão, levanto o braço para o aceno e sou arrastado pela massa dos que querem embarcar e desembarcar. Estou só no meio da plataforma e ando até a passarela que dá acesso ao outro lado por cima dos fios de alta-tensão. Apoiado no corrimão de metal escuto os ruídos soarem no teto sustentado pelos postes de concreto plantados nas duas margens da estação. Procuro enxergar pela treliça suja de fuligem o trecho do rio que segue a linha de trem na curva da estrada. Mas a batida das passadas atrai meu olhar para baixo e vejo as colunas de operários marchando pela plataforma esquerda. Eles vestem o uniforme pardo da ferrovia e suas faces estão pálidas e marcadas pelo desgaste. Os apitos regulam o ritmo das solas pesadas e assim que a última fileira ultrapassa o portão de saída o molho de chaves retine nas grades. Desço até a catraca e pelo hall apagado chego à entrada da estação. O pátio da frente continua vazio e o vento levanta as folhas de jornal espalhadas pelo chão. Movido pelo ar úmido atravesso a rua e dobro a ladeira que pega impulso na altura da casa colonial. A porta e as janelas estão fechadas e me surpreende a grama que cresce reluzente à beira da calçada. Acompanhando a linha de paralelepípedos debaixo do asfalto completo a subida em direção à ruela que abre para a catedral ao fundo. A pista molhada pela chuva irradia as luzes de mercúrio e a ponta dos postes já some na neblina. Atendendo a um apelo obscuro estaco na esquina do beco por onde aparece o teatro do outro lado e na frente de uma vitrine acesa levanto a cabeça: minha mãe está na janela do sobrado e seu rosto brilha entre as cortinas de renda. É meia-noite, o sino da catedral está batendo e nesse momento eu encosto as mãos na parede da casa onde nasci.

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