São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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A mercantilização da culpa eterna

JAVIER MARÍAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma boa parte da história da humanidade, uma boa parte das iniciativas e reações dos homens responderam ao sofrimento insuportável de algum agravo e à necessidade de lavá-lo ou ressarcir-se dele o quanto antes.
Uma afronta, individual ou coletiva, arde de tal maneira, que não se encontrava descanso até vê-la reparada ou devolvida. A vingança, a represália, o desafio, a mágoa, tudo isto -ainda que muito selvagem- obedecia a um desejo de restabelecer um equilíbrio que se acaba numa paz, depois do sangue, para um espírito propenso em qualquer circunstância a saldar as contas, a encarar as disputas ainda que fosse de uma maneira brutal e viver depois com a apaziguada consciência de não ser credor nem estar em débito.
Nem sempre se conseguia isso com total segurança, ou somente durante um tempo, que no entanto bastava às vezes para que as coisas seguissem seu rumo, não fossem envenenadas pelos ódios e pudesse haver avanços, e portanto uma possibilidade de paulatino esquecimento. Ou seja, havia tréguas, honras momentaneamente salvas, excessos corrigidos, situações sentidas como equivalentes, o que em tempos distantes se chamava "satisfações". Alguém podia dizer depois da compensação: "Com isto me dou por satisfeito".
O espírito mercantil de nosso tempo descobriu uma regra abominável neste campo: vale muito mais manter o próximo em permanente débito, e a última coisa que interessa é saldar as contas. E mais, não há nada tão rentável e benéfico como sofrer agravos, e se não são sofridos é necessário inventá-los. A humilhação, que antes se constituía numa carga intolerável para quem a tinha recebido, goza agora de prestígio e é um bem desejável, e ai daquele indivíduo, comunidade ou povo que não tenha nada em que censurar os outros, que não seja vítima passada ou presente, que não se sinta subjugado e avassalado, violado e atropelado, e assim para sempre.
Não há interesse em remediar esta situação ou este sentimento, mas antes ao contrário: o que se busca é eternizá-los, e se possível aumentá-los. Nada pode limpar uma ofensa, real ou imaginária, porque o ofendido nunca está disposto a vê-la limpa ou porque no fundo crê que não teria identidade sem esta injúria que o justifica e lhe dá poder e voz, sempre a voz gemente da acusação e do lamento.
O orgulho se foi para um mundo melhor, assim como a inteireza de não se queixar, a dignidade da dissimulação, a elegância da conformidade, a idéia de magnanimidade associada à suspensão das dívidas ou ao alívio de uma culpa.
Ninguém mais quer isto, mas antes a preferível e fraudulenta exploração do ofensor e de sua ofensa, a qual se estende ao futuro e até mesmo ao passado e, o que é mais grave, aos congêneres e compatriotas e herdeiros e descendentes de quem comete ou cometeu uma vez o agravo, na noite dos tempos.
Esta é uma perversão maiúscula e a melhor maneira de se perpetuarem os conflitos e se enquistarem os rancores: atribuir, por analogia ou delegação, os crimes de um indivíduo, ou uma instituição, ou um país ou uma época aos que não os cometeram. Na realidade disse mal, contagiado por esta tendência, pois é uma falácia que as instituições ou os países ou as épocas cometam crimes: estes sempre são dos indivíduos, que com frequência os invocam e neles se amparam, o que é muito diferente. Ainda que seja verdade que o êxito de tal atitude de culpabilização sem fim nem limites nem expiração dependa em boa medida de sua aceitação por parte dos culpabilizados, e em nosso tempo assistimos sem cessar a presunçosos e grotescos atos de contrição levados a efeito por aqueles que não fizeram nada.
O papa pede perdão a Galileu que morreu há séculos e para quem de pouco serviriam as palavras de arrependimento de um polonês que não tomou parte em sua condenação. Índios de não sei que tribo exigem do rei da Espanha que apresente desculpas pelo que fizeram há séculos, em nome de um vago antepassado, soldados que no meio da selva não deviam obedecer ordens nem se lembrar de a quem serviam.
É de todos conhecido como muitos hispano-americanos, sobretudo no México, censuram qualquer espanhol contemporâneo pelas tropelias cometidas pelos que foram seus tataravós, não os nossos, que nem sequer se moveram de suas más terras ibéricas. Alguns bascos invocam remotas afrontas para fazer saltar pelos ares qualquer espanhol, dando assim o transcendental estatuto de natureza à nação que segundo eles seria somente uma enteléquia.
Há mulheres que transformam o primeiro homem que encontram no responsável pela submissão e pela brutalidade que outras mulheres sofreram em mãos de outros homens, todos mortos e enterrados, e por sua vez o homem acusado se flagela e pede perdão em nome daqueles que não conheceu e que talvez tivesse detestado.
Os alemães de hoje ainda se martirizam pensando no que fizeram pessoas com a mesma língua e o mesmo passaporte, como se o passaporte e a língua fossem veículos da crueldade e do crime impossíveis de serem deixados de lado. Há muito de cristão em tudo isto, muita crença na transmissão do pecado e na redenção impossível, na mancha indelével que se estende ao longo do tempo e do espaço e que nunca pode ser lavada. Há também muito de vaidade, de fatuidade, de arrogância.
Quem tem autoridade para pedir perdão pelo que fizeram ou disseram outros, quem tem autoridade para se arrogar a representação de um país ou uma instituição ou um povo, todos eles -insisto- tão inocentes ou culpados como uma jarra ou uma enxada? Quem é tão importante e etéreo para se erigir em abstração? Muito frequentemente se ouvem ou se lêem estas fórmulas tão jactanciosas: "Eu, enquanto catalão...", ou "Eu, em minha qualidade de mulher..." ou "Eu, como representante da raça negra..." ou "Eu, em minha condição de católico...".
Nem sequer quem ocupa o mesmo cargo que o antigo ofensor, nem sequer um rei ou um papa tem o menor direito ou poder para desmentir ou retificar as palavras ou atos de seus predecessores, e tampouco alguém tem o direito de lhes cobrar tal coisa. As decisões são sempre dos indivíduos, como o são os atos de heroísmo e os assassinatos, as condenações e as façanhas, as injustiças e as clemências, porque, à parte os indivíduos, na realidade não há nada.
Mas este jogo duplo que tenta negar isto está cada vez mais espalhado e prospera, e as duas figuras se nutrem mutuamente, e só levam à perduração do ressentimento e do ódio: o agravado que não quer se desagravar e o inocente que assume as culpas de outros e com isto enche de razão o primeiro. Parece que ninguém se atreve mais a se dar por satisfeito e a declarar que se encontra reparado por um mal causado.
Também parece que ninguém se atreve a responder "e eu, o que tenho a ver com isso?", quando se lhe é atribuída a culpa por algo ocorrido antes de seu nascimento. Já há suficientes querelas e afrontas reais no presente para se ter que pagar ou cobrar também as quiméricas do passado, que não tem reverso possível. Uma e outra figura vêm há muitos anos tornando o mundo mais difícil de se viver, justificando massacres e assassinatos e guerras que na maioria dos casos deveriam ter ficado somente no território espectral por onde talvez transite o que aconteceu e já não existe e nunca no efetivo.

Tradução de Ricardo de Azevedo.

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