São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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Em carta a Shaw, economista chama "O Capital" de obscuro

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acossados pela história e em flagrante minoria no cenário acadêmico internacional, keynesianos e marxistas parecem hoje dar as mãos, num último esforço para enfrentar o furacão neoliberal que, segundo eles, está conduzindo o planeta à mais aberta selvageria.
Diante do avanço atual do neoliberalismo, preparado nos anos 80 pelo consenso acadêmico entre economistas e transformado a seguir em receita geral da condução da política econômica dos governos, Karl Marx e John Maynard Keynes foram jogados por seus discípulos numa estranha vizinhança póstuma, que este último talvez nunca tenha desejado ou imaginado ser possível.
A distância que separa Keynes de Marx foi diversas vezes enfatizada pelo primeiro. Num texto célebre, intitulado "As Possibilidades Econômicas de Nossos Netos", ele escreve que "ainda em nossa época, deverá ser provado o desacerto de dois erros opostos de pessimismo que atualmente tanto tumultuam o mundo, o pessimismo dos revolucionários, para quem as coisas vão tão mal que nada pode nos salvar, e o pessimismo dos reacionários, para os quais não nos devemos arriscar em experiências".
Mesmo admitindo-se que tanto Keynes como Marx viam na idéia central do liberalismo -a famosa "mão invisível" do mercado, de Adam Smith- uma falácia, isso não significa que partilhassem do mesmo instrumental teórico ou das mesmas expectativas práticas.
Depois de uma breve estadia na ex-URSS em 1925, Keynes se refere ao comunismo recém-implantado naquele país nos seguintes termos: "Como posso aceitar uma doutrina que estabelece como sua Bíblia, acima e além da crítica, um livro-texto obsoleto de economia que, pelo que sei, não é apenas cientificamente errôneo, mas igualmente sem interesse e aplicação no mundo moderno?".
Mais emblemática que essa passagem, talvez só a correspondência trocada entre Keynes e o dramaturgo e jornalista Bernard Shaw (1856-1950), socialista dos mais inflamados, já na década de 30.
Dois anos antes de publicar seu "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", em 1936, Keynes escreve a Shaw dando notícias e diz que em breve revolucionaria a ciência econômica.
Sentindo-se provocado, Shaw não fez por menos. Respondeu a Keynes dizendo que, se pretendia mesmo revolucionar o que as pessoas pensavam sobre a economia, teria antes que ler "O Capital", de Marx, caso contrário sua empreitada seria um tiro n'água.
A réplica de Keynes, de 2 de dezembro de 1934, é talvez a mais demolidora de suas opiniões a respeito de Marx. Escreve ele, referindo-se a "O Capital": "Não entendo como um livro tão obscuro, tão árido, tão permeado de controvérsias e tão inadequado para o fim a que se propõe pôde exercer impacto tão grande. Sei que é historicamente importante, e que muitas pessoas, nem todas idiotas, encontram nele uma espécie de rocha da sabedoria".
A seguir, depois de comparar "O Capital" ao Alcorão, o livro sagrado do islamismo, Keynes pergunta-se como qualquer um desses livros pôde seduzir a metade do planeta. "Isso me ultrapassa. Deve haver algum defeito na minha capacidade de compreensão".
(FBS)

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