São Paulo, domingo, 21 de abril de 1996
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Cidadão Keynes

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Personalidade arrogante, homem de negócios, burocrata do setor público inglês, polemista incansável de jornais, produtor teatral, colecionador de livros raros, alguém educado segundo a rígida moral vitoriana e no entanto expoente de um escrachado círculo de intelectuais londrinos, homossexual casado com uma bailarina russa -tudo isso foi John Maynard Keynes, morto há 50 anos, em 21 de abril de 1946.
Mas foi sobretudo, e em primeiro lugar, o maior gênio econômico do século, alguém capaz de mudar com um único livro -"A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", de 1936- não apenas a ciência a que se dedicou, mas o próprio curso do capitalismo.
Sobre essa obra, responsável pela chamada "revolução keynesiana", Paul Samuelson, Nobel de Economia em 1970, disse que "atingiu a maioria dos economistas em idade abaixo dos 35 anos com a inesperada virulência de uma doença que pela primeira vez ataca e dizima uma tribo isolada nos mares do Sul". Apesar disso, continuou Samuelson, tratava-se de "um livro mal escrito e mal organizado. (...) Arrogante, mal-educado, polêmico e não muito generoso nos agradecimentos. Em suma, um trabalho de gênio".
Mas em que consistia, afinal, tal genialidade? De forma muito suscinta, contrariando toda a ortodoxia da época, presa ainda à idéia clássica da auto-regulação da economia por meio do mercado, na proposição de que o capitalismo é um sistema econômico essencialmente instável e tende constantemente para o desequilíbrio.
Escrito sob o forte impacto da Grande Depressão de 29, em meio a uma crise financeira generalizada e uma onda de desemprego de proporções inéditas, o livro transformou Keynes numa espécie de demiurgo da economia do século.
Mas, se é verdade que Keynes reinou como nenhum outro economista durante décadas, isso não significa que hoje ele exerça a mesma influência que alcançou até o início dos anos 70, quando a chamada "era keynesiana", iniciada no pós-guerra e marcada por um forte intervencionismo estatal na gestão da economia, começou a desmoronar, até virar pó.
Como quase tudo em economia, a situação de Keynes hoje também aparece sob o signo do paradoxo. Quem o acolhe com mais simpatia e até algum fervor, reivindicando sua mais estrita contemporaneidade, são os economistas de esquerda, muitas vezes de filiação marxista. Os ortodoxos e liberais, por seu lado, mesmo reconhecendo que depois dele a economia e o mundo nunca mais foram os mesmos, tendem a atribuir a Keynes apenas um lugar de honra na galeria dos gênios: mais um patrimônio da humanidade e menos um pensador capaz de instruir o debate sobre o presente.
Para usar uma fórmula fácil, os adversários do capitalismo estão hoje muito mais próximos de Keynes do que aqueles que hoje fazem a defesa inconteste do sistema econômico que ele, afinal, salvou.
Civilizar o capitalismo
Isso fica claro nos depoimentos sobre Keynes colhidos pela Folha. O economista Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, professor titular da Universidade de Campinas, autor de uma importante obra sobre a teoria do valor em Marx, não hesita em afirmar que Keynes é o "último economista intelectual que o século 20 produziu". Sua obra, diz Belluzzo, "está atravessada pela preocupação de civilizar o capitalismo".
Citando o biógrafo inglês de Keynes, Robert Skidelsky, Belluzzo defende que depois dele "os economistas parecem ter se esquecido de estudar a história".
A atualidade de Keynes, continua Belluzzo, reside no ponto que, para horror dos liberais, mais o aproxima de Marx. "Assim como Marx, Keynes percebeu como ninguém que o objetivo da economia capitalista não é prover valor de uso para seus membros, mas produzir riqueza abstrata. Keynes incorpora a idéia marxista de que o capitalismo é um processo sem sujeito, embora não a tenha formulado nesses termos. Daí deriva sua crítica ao liberalismo, segundo a qual as forças de mercado, deixadas a sua própria sorte, são autofágicas, se auto-destroem", diz.
Ao contrário de Belluzzo, o economista Adroaldo Moura da Silva, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e autor da introdução à "Teoria Geral" para a coleção "Os Economistas", da Editora Abril, acredita que Keynes envelheceu em mais de um sentido. Primeiro, diz ele, porque "caducou a idéia do intervencionismo estatal na economia como forma de garantir o pleno emprego. Isso acabou produzindo mais mazelas do que bem-estar".
Mas, além disso, continua Adroaldo, Keynes está ultrapassado porque "pertence à tradição de economistas que acreditavam possuir uma varinha de condão capaz de produzir o bem-estar coletivo". Essa linhagem, explica, é responsável "pela arrogância dos economistas, que se viam como os grandes construtores da sociedade contemporânea. Hoje essa arrogância está morrendo, junto com as ilusões da macroeconomia". É por isso, conclui ele, que Keynes é hoje "peça de museu, sem prejuízo do papel central que exerceu".
Também vai nessa direção a avaliação do economista Eduardo Giannetti da Fonseca, professor de história do pensamento econômico na USP. Segundo ele, Keynes pertence a uma tradição pragmática da economia, que remonta a Francis Bacon, no século 17. "Keynes é refém da visão platônica do rei-filósofo, que reivindica postos de poder àqueles que são dotados de algum saber", diz.
É por isso, exemplifica Giannetti, que num texto célebre intitulado "As Possibilidades Econômicas de Nossos Netos", escrito em 1930, Keynes compara a profissão de economista ao ofício do dentista. "Se os economistas pudessem dar um jeito de serem considerados como pessoas humildes e competentes, num mesmo nível que os dentistas, seria excelente", escreveu Keynes. Aquilo que poderia ser lido como um voto de humildade, é, para Giannetti, um sinal inequívoco de que para ele o economista tinha como função suprema reformar a sociedade.
Se isso ainda hoje é um vício da profissão, aliás muito palpável no Brasil, Giannetti acredita que a hegemonia do pensamento keynesiano, tanto prática como teórica, foi afetada por várias razões. Entre elas, uma básica: "Todo o pensamento keynesiano pressupõe a autonomia dos Estados nacionais, que seriam definidores de políticas econômicas. Com a globalização e a desregulamentação dos mercados financeiros, o espaço para esse ativismo keynesiano ficou muito exíguo. O mundo institucional da economia keynesiana já não existe mais", afirma.
Além disso, argumenta Giannetti, surgiu nos anos 80 uma escola econômica batizada de "escolha pública" (public choice), que mina no plano teórico o arcabouço do keynesianismo. Diz o expoente dessa escola, James Buchanam, que Keynes e seus seguidores sempre trabalharam com a idéia equivocada de "um setor público voltado para o bem-comum".
Isso, afirma Giannetti no rastro da "public choice", não existe, "a burocracia pública funciona muitas vezes segundo seus próprios desígnios, o que fica claro nos ciclos econômicos dos períodos eleitorais". O exemplo preferido da "public choice" contra Keynes é o famoso episódio envolvendo Richard Nixon na véspera da eleição, quando, premido pelas circunstâncias, institui um súbito controle de preços, afasta os economistas liberais de seu governo e solta a seguinte pérola: "Agora somos todos keynesianos".

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