São Paulo, quinta-feira, 25 de abril de 1996
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A persistência do antigo regime

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Vocês vão me perdoar, mas não vou falar de economia hoje. A matança dos sem-terra no Pará relega os outros temas obrigatoriamente a segundo plano.
Apesar dos meus antolhos de economista, acredito ter aprendido algumas coisas com certos historiadores e com a observação da vida brasileira. Por exemplo: que as sociedades mudam mais lentamente do que pode parecer à primeira vista.
É como se a história fosse composta de camadas que se movem em velocidades muito diferentes.
No plano da tecnologia, dos estilos de consumo, dos acontecimentos políticos, por exemplo, as mudanças podem transcorrer em ritmo acelerado.
Mas certos padrões estruturais, mentalidades, atitudes básicas e esquemas de poder parecem imunes à passagem do tempo e tendem a se reproduzir por longos períodos.
O historiador Arno J. Mayer, ao reexaminar a Europa do século 19, mostrou como as tradições do antigo regime, as forças da inércia e do conservadorismo continuaram marcando profundamente a história européia, em plena "era da revolução". Mostrou como as forças do passado contiveram e refrearam, por muito tempo, a expansão e a consolidação da sociedade burguesa industrial.
Bem. Essa divagação diletante é para chegar ao seguinte: quem conhece o Brasil e os brasileiros não deixará de notar o vigor e a persistência do nosso "antigo regime", a sobrevivência teimosa de traços centrais do sistema colonial-escravocrata dentro do qual se formou o país.
Nem se poderia esperar o contrário. Como pretender que não sobrevivam elementos fundamentais do passado num país cuja história se singulariza pela ausência de grandes rupturas, na qual as modificações se processaram, em geral, de forma gradual e negociada -inclusive a Independência e a Abolição da Escravatura?
Não é preciso grande acuidade para perceber as marcas do antigo regime nas camadas dominantes brasileiras, por exemplo. Disfarces retóricos à parte, o seu comportamento tem-se pautado, quase sempre, por duas características: no plano internacional, subserviência temerosa em face dos países mais adiantados; no plano interno, a defesa de um sistema que garante altíssimo grau de concentração da renda e da riqueza.
Nesse contexto, as tentativas de "modernização" não são, geralmente, rupturas com o antigo regime, mas formas de prolongar a sua sobrevivência.
O governo Fernando Henrique Cardoso, atrelado que está aos esquemas tradicionais de poder, não escapa (nem tenta escapar) a essa regra.
Sem reconhecer isso, como é possível entender o massacre dos sem-terra? Ou a reação do supremo mandatário da República, que parece preocupado, em primeira linha, com a cobertura da CNN e, para usar as suas palavras, com o preço que "o presidente paga perante o mundo"?
A impressão que se tem é que por trás da indignação, muitas vezes retórica, da classe política e da opinião pública, pulsa inalterada a feroz resistência à mudança numa sociedade marcada a ferro quente pelo estigma colonial-escravista.
Mas, enfim, não vamos exagerar. Também há esperança na periferia subdesenvolvida. Também aqui não falta a enigmática vontade de viver.
O próprio Movimento dos Sem-Terra é uma demonstração de vitalidade do povo brasileiro, da sua disposição de lutar contra a maldita herança escravocrata.
Tchekhov, um dos grandes escritores russos do século passado, ele próprio filho de servo, relatou certa vez com palavras memoráveis a sua luta pessoal pela emancipação e descreveu de maneira comovente os obstáculos que teve de vencer para alcançar a liberdade real.
Haverá de chegar o tempo em que o brasileiro poderá também relatar como um povo treinado para respeitar a hierarquia, para acatar as idéias alheias, para agradecer cada pedaço de pão, que foi muitas vezes chicoteado e esmagado pela consciência da sua própria insignificância, como esse povo afinal espremeu, gota a gota, o escravo que tinha dentro de si e, ao acordar certo dia, sentiu que em suas veias já não corria o sangue de escravos, e sim o de homens livres.

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