São Paulo, quinta-feira, 25 de abril de 1996
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Goya

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Pintor é como time de futebol: cada um tem o seu. Difícil explicar por que se prefere Goya a Rubens, Cézanne a Van Gogh. Madri vai comemorar os 250 anos do nascimento "do principal pintor espanhol do século 18". Pergunto: por que século 18?
A habilidade pictórica, a intimidade com a cor e o gesto fizeram de Francisco de Goya y Lucientes um artista da corte -uma corte ridícula como todas as outras cortes, espanholas ou não.
Foi um profissional: fazia o que lhe pediam e tinha a capacidade de ridicularizar a realeza com o seu traço másculo. E o fazia de tal forma que os criticados nem percebiam o sarcasmo. Os retratos que deixou do rei Carlos 4º, de sua mulher e filhos revelam que o artista pode ser grande mesmo em circunstância policiada.
Bastaria sua fase cortesã para fazer dele o já mencionado maior pintor do século 18 na Espanha. Mas Goya foi bem mais do que isso. Na Quinta del Sordo, longe da corte, possuído pelo gênio que o inquietava desde menino, ele nos deixou a maravilhosa sequência de "dibujos" que nem mesmo a arte iconoclasta dos modernos (dadaístas, surrealistas, cubistas etc.) superaria em violência e verdade.
Falar de Goya requer espaço maior e vou direto ao que me interessa. Tenho no meu escritório duas reproduções compradas há anos no Museu do Prado. O Goya cortesão, retratando os folguedos da corte ("La Galina Ciega"), e o Goya desesperado e imenso de "Saturno Devorando seu Filho". Saturno é o Chronos grego, ou seja, o tempo que devora seus filhos, todos nós.
Os dois quadros ilustram o drama que atormenta o homem, qualquer homem. A obrigação de distrair a corte, perdendo tempo com ela. E a necessidade de descer fundo na consciência, procurando o impossível que é conhecer a si mesmo, o "gnôthi seauton" dos gregos. Goya foi mais do que um pintor. Foi o gênio que exprimiu a dualidade e a desgraça do homem.

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