São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O faz-de-conta e o social

ROBERTO CAMPOS

Já tivemos, no passado, uma tentativa de revolução contra a vacina obrigatória. E no início deste século os "mata-mosquitos", que tornaram habitável o Rio de Janeiro, infestado de febre amarela, foram violentamente combatidos. Em nome das liberdades democráticas, naturalmente... Nosso juízo, portanto, pode ser bastante relativo. Neste momento, estamos sendo sacudidos pelas rabeadas da crise econômica que nossa permissividade política, culminando na farra constitucional de 1988, agravou ao ponto de que agora realmente assusta. O governo não está conseguindo tocar a tempo as reformas necessárias. O Estado está no limite da "disfuncionalidade", e o desemprego, o desgaste da esperança e o cansaço do público abrem brechas para os elementos políticos desestabilizantes.
A precária informação disponível dificulta distinguirem-se quais os problemas reais, por trás da deblateração sobre as "desigualdades na distribuição da renda e da riqueza". A confusão mágico-ideológica é tal que faz o horóscopo diário parecer coluna científica. É abrir um jornal ou ligar a televisão, e lá estará algum ator ou político reclamando porque o governo não acaba com o desemprego ou a pobreza por decreto, por exemplo, aumentando condignamente o salário mínimo. Se isso fosse possível, bastaria um projeto de lei do PT determinando que nosso salário mínimo fosse igual ao americano e reajustado nas mesmas épocas...
Vejamos alguns fatos. A distribuição da renda no país é certamente escandalosa. Em particular, a proporção da pobreza absoluta é lamentavelmente alta. Mas perceber que alguém não está bem de saúde não representa nem um diagnóstico nem uma terapia. Há uma infinidade de fatores econômicos, políticos, culturais -"sociais, em suma", cujas complexas interações conhecemos, em geral, muito insuficientemente. E o Brasil vai do paleolítico ao futuro informático.
Sem simplificar demais podemos identificar as três mais importantes raízes do difícil panorama social de hoje: a grande pressão da demanda, a incapacidade do Estado na gerência dos recursos escassos e a falta de liberdade econômica. A pressão da demanda deve-se à diversificação do consumo, ao efeito de demonstração das economias mais ricas, à urbanização e, sobretudo, à explosão demográfica. Esta é fenômeno sem precedentes, que atingiu dramaticamente os países menos desenvolvidos depois da 2ª Guerra Mundial. Enquanto as taxas de natalidade continuavam altas, as de mortalidade caíram, em uns 20 anos, mais ou menos o que levara 200 nos países hoje "desenvolvidos".
O problema é que produzir gente não é a mesma coisa que produzir bens. E para gerar os empregos que a gente vai exigir, são precisos altos níveis de investimentos, ou seja, uma poupança elevada. Para cada 1% de crescimento demográfico, é preciso deixar de consumir 1% de renda per capita potencial, sacrificando portanto as expectativas de consumo daqueles que já estavam "instalados".
Há mais de 40 anos, H. Leibenstein mostrou com que facilidade os países pobres podiam cair numa "armadilha demográfica" de baixo ritmo de desenvolvimento. Um crescimento de 3% ao ano dobraria a renda per capita em 23 anos, se a população não aumentasse. Mas muitos países do Terceiro Mundo, inclusive o Brasil, andaram aumentando a população perto dessa taxa entre 50 e 80. (Felizmente hoje declinou substancialmente nossa produtividade sexual). As novas levas de gente não se contentam com o cabo da enxada, ou com o barraco da favela. Querem ter acesso a todas as coisas apetecíveis que vêem no cinema e na TV. Só para dar uma idéia, produzir um cidadão de país rico é caro. Cada americano nascido hoje gerará, durante a sua vida, mil toneladas de poluentes atmosféricos, mil de lixo sólido, e 10 mil de poluentes líquidos, e demandará investimentos da ordem de US$ 250 mil em educação, infra-estrutura, equipamentos e máquinas, habitação e alimentação até a idade de trabalho.
O progresso tecnológico e econômico trouxe, também, outro resultado revolucionário: um grande alongamento da vida humana média. Tal "envelhecimento" é um excelente sinal, porque o brasileiro passou a viver hoje perto de 25 anos mais do que vivia. Mas como sustentar o número crescente de inativos com um número de ativos de apenas 2,3 por aposentado? Certamente não se pode pedir que o governo reduza novamente a média de vida do povo para 42 anos -o que ele sem dúvida saberia fazer. Mas é indispensável uma reforma da Previdência Social para acabar com as aposentadorias precoces de atletas residuais e balzaquianas sadias...
O resumo da ópera é que uns 100 milhões de pessoas, muitas delas sem as mais elementares qualificações, vieram somar-se, nas cidades, aos 18 milhões que nelas moravam em 1950. Com isso, o país acabou dividido em dois setores, mais ou menos justapostos sem muita interpenetração: uma metade moderna com quase 90% do PIB nominal, e uma metade "de baixo", com pouco mais de 10%.
A verdade é que o país "moderno" até recentemente não tomava muito conhecimento das novas levas que chegavam para a periferia das cidades, ou sumiam no mato como posseiros. Era o auge do desenvolvimentismo. Davam de barato que o crescimento econômico acabaria empurrando todos para a frente -como, então estava de fato acontecendo. O governo que cuidasse de saúde, educação, e assim por diante... Por sua vez, as esquerdas, nos gordos anos dogmáticos antes do colapso do socialismo, se embalavam no sonho de que a simples eliminação da propriedade privada inauguraria a era da "justiça social".
Aí entra o segundo, e pior dos problemas, a inépcia do Estado. É preciso reconhecer-se que, em determinadas fases, o Estado brasileiro teve um papel positivo. Modernizado por Vargas, foi fundamental no Programa de Metas de Juscelino Kubitschek. E, depois do caos de João Goulart, foi recuperado por Castello Branco, fornecendo a base para o brilhante desempenho do "milagre brasileiro" -crescimento de 9% ao ano de 1965 a 1980. Mas por uma série de fatores, a sua modernização regrediu no final do regime militar, quando se desenvolveu um incontrolável corporativismo estatal. E, a partir de 1985, ocorreu uma fatal combinação de demagogia populista, fisiologismo clientelístico e a ação ideológica de esquerdas defasadas de 20 ou 30 anos.
Dificuldades de transição teriam sido inevitáveis. Mas o fato é, no caso brasileiro, a combinação peculiar de fatores negativos acabou comprometendo quase totalmente a capacidade de gestão do governo: fixar objetivos, determinar tarefas, controlar resultados e cobrar desempenho. E quanto mais incapaz o governo, maior sua volúpia intervencionista, roubando liberdade ao setor privado.
Alguns começam a reviver noções de luta de classes, idéias de tirar dos "ricos" para dar aos "pobres". Pode de fato ser preciso pedir mais de quem tem mais, para aliviar quem tem menos. Mas antes é preciso que o Estado adquira o mínimo de eficiência e respeitabilidade; ser capaz de cobrar, demitir e prender.
O Brasil já gasta hoje com programas sociais uma proporção do PIB maior do que os Estados Unidos, com uma carga tributária efetiva da mesma ordem da deste país. A carga nominal, se pagos todos os impostos, andaria por 60% do PIB -alturas escandinavas. E para ter o que? Isso que aí está?
O Estado faz mais do que pode, em fazer o que deve. Sua reformulação através de uma privatização acelerada, até mesmo selvagem, é a mais lancinante de nossas urgências.

Texto Anterior: Confusão no ninho; Filme antigo; Dormindo com o inimigo; Consulta geral; Apoio liberal; Santo de casa; Jogando verde; Mentira da semana; Apoio total; Bola dividida; Custo e benefício; Choro premiado; Opção clara; Sala ao lado; Mercosul do B; Tema de campanha
Próximo Texto: Testemunha apontou trama no massacre
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.