São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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Biografia se perde entre fato e ficção

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Se a vida de Lúcia Rocha daria um romance, a de seu filho Glauber daria vários. É o que se infere da proposta do livro "Glauber - a Conquista de um Sonho - os Anos Verdes", de Ayêska Paulafreitas e Júlio César Lobo (Ed. Dimensão, tel. 031/411-2122). Trata-se de uma biografia restrita ao período que os autores chamam de "anos verdes", ou seja, da infância até seus 22 anos, quando filma seu primeiro longa, "Barravento" (1960). Não há dúvida de que tudo o que não está contado nas 340 páginas do livro daria outras tantas biografias.
Porém, a intenção dos autores não é inaugurar o primeiro volume de uma série, mas simplesmente narrar a saga da juventude de Glauber aos "jovens brasileiros" de hoje. Neste ponto começam as contradições do livro. Segundo relatam os autores na apresentação, a idéia nasceu da constatação de que "a maioria dos adolescentes de Salvador só conhecia Glauber Rocha como o nome de um cinema". Assim, era preciso "contar a eles quem foi Glauber Rocha". A primeira contradição salta aos olhos -e não devia ter escapado aos autores, como escritores e jornalistas experientes que são. Se o cinema tem pouca penetração entre os jovens, a literatura terá menos ainda. Portanto (infelizmente!), não será um livro, lançado por uma editora séria, porém pequena, que irá de uma vez por todas esclarecer aos adolescentes quem foi Glauber.
A segunda contradição, combinada à primeira, compromete ainda mais o resultado final. Se pode haver algum apelo popular na biografia de Glauber, este reside justamente no caráter revolucionário e polêmico dos filmes que dirigiu imediatamente após o período abrangido pelo livro. Portanto, depois de ler "Os Anos Verdes", jovens e adultos permanecerão ignorantes sobre a grande revolução glauberiana, tanto no cinema quando na teoria cinematográfica mundiais.
Conceda-se a inegável importância da pesquisa e dos dados levantados pelos autores sobre Glauber Rocha, desde seu nascimento em Vitória da Conquista, sua mudança para Salvador, depois seu entrosamento com a efervescente comunidade intelectual e artística local, até o momento em que assume a direção de "Barravento", iniciado por Luiz Paulino dos Santos.
Percebe-se, desde o início, que a fonte principal das revelações foi Lúcia Rocha, arquivo vivo e memória prodigiosa da vida e da obra de seu filho. Além desta, constata-se um grande número de outras fontes e entrevistas utilizadas para traçar o quadro de dois Brasis: um, reminiscente do cangaço, onde a única lei que impera é a do fuzil e que corresponde à infância de Glauber em Vitória da Conquista; o outro, da modernidade, numa Salvador que se desenvolve na esteira do projeto nacional e da abertura de Juscelino, nos anos 50, momento em que o cinema de Glauber dá os primeiros passos.
Tudo isso teria um interesse inestimável para o pesquisador, já devidamente instruído sobre a obra de Glauber, não fosse a terceira contradição do livro: a intenção de torná-lo uma obra de fácil leitura "para os jovens". A consequência é um texto romanceado, com uma linguagem às vezes até infantilizada, que compromete a confiabilidade das informações. Os "rasgos de genialidade" de Glauber, que escrevia peças de teatro desde os nove anos de idade, sua atividade nas "jogralescas", teatralizando poemas brasileiros, sua convivência na juventude com personagens que se tornariam grandes nomes, como João Ubaldo e Caetano Veloso, seu escandaloso romance com a futura atriz Helena Ignez, tudo é contado com a leveza de história em quadrinhos, onde a fofoca se equipara ao fato e a realidade se dissolve numa ficção empobrecedora.
Enfim: os jovens que não conhecem Glauber deverão, antes, ver seus filmes, para depois usufruir de sua biografia juvenil. E o pesquisador terá que separar cuidadosamente o joio do trigo, se quiser recompor um retrato fiel do cineasta quando jovem.

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