São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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A guardiã do acervo de Glauber

LÚCIA NAGIB
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

Lúcia Andrade Rocha é um tipo mignon, delicado, que não faz segredo de seus "77 anos e quatro pontes de safena". Difícil imaginar que venha tocando sozinha, há 16 anos, com infatigável determinação, uma tarefa que exigiria a estrutura e a equipe de um museu: a organização e preservação do volumoso acervo de seu filho, Glauber Rocha.
Na verdade, a vida de Lúcia é uma história na qual a fragilidade jamais teve lugar. "Minha vida dava um romance", ela costuma dizer -e com razão, quando se contabiliza o número de tragédias por que passou. Lúcia viu morrer, um após outro, o marido e os três filhos. Um deles, a menina Ana Marcelina, desapareceu ainda criança. Os outros dois tiveram tempo de tornar-se grandes artistas: a atriz Anecy Rocha e Glauber, o maior cineasta brasileiro.
Vendo o marido incapacitado para o trabalho em consequência de um acidente, Lúcia criou os filhos praticamente sozinha, apostando no talento de Glauber, desde quando, na escola, o rejeitavam como menino-problema. Não vacilou ao ver o filho lançar-se na aventura do Cinema Novo, dando todo o dinheiro que tinha e vendendo seus bens para aplicar nos filmes.
A morte de Glauber, em 1981, foi um choque que quase levou Lúcia à morte por angina. Mas afinal, segundo ela afirma, resolveu viver para cumprir a última vontade do filho, que era ter sua obra organizada e dedicada "aos jovens brasileiros". Assim, nasceu o Tempo Glauber, um acervo precioso contendo milhares de materiais escritos, desenhos, pinturas, fotografias -tudo, no entanto, armazenado de maneira precária e com a catalogação ainda por finalizar.
Localizado numa bonita casa na rua Sorocaba, em Botafogo, no Rio, o Tempo Glauber sofre, no entanto, de carência financeira crônica. Até hoje, entidades públicas e privadas nada fizeram além de pequenas doações ou promessas não-cumpridas. Depois de tentar todas as alternativas e vivendo ela mesma à custa de um pequeno salário, Lúcia não desiste. No dia 19 de março passado, lançou uma nova tentativa de arrecadar fundos: a Sociedade Amigos de Glauber. Foi uma cerimônia concorrida e cheia de estrelas, mas os resultados práticos ainda estão por aparecer.
Nesta entrevista, Lúcia Rocha dá o depoimento comovente de sua luta pela obra de Glauber e pelo cinema brasileiro. E aproveita para fazer um apelo aos interessados em contribuir para a preservação desse patrimônio valioso: liguem para 021/246-8829 e tornem-se membros da Sociedade Amigos de Glauber.
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Folha - Qual a origem do Tempo Glauber?
Lúcia Rocha - Pouco antes de levar "A Idade da Terra" a Veneza, Glauber pediu-me que levasse toda sua obra para o meu apartamento em Salvador. Ele pensava em trabalhar comigo na organização de uma sede para seu acervo, que se chamaria Pólo Cinematográfico Gerador da Cultura Brasileira e seria dedicado aos jovens brasileiros. Então fui oito vezes de ônibus, do Rio para Salvador, carregando a papelada toda. Quanto aos filmes, Glauber me pedira para enviá-los à Cinemateca Brasileira, em São Paulo.
Folha - Ele tomou essas providências antes da desastrosa viagem a Veneza e de toda a polêmica em torno de "A Idade da Terra". Será que, de alguma maneira, ele previa a própria morte?
Rocha - Num poema que escreveu em 1980, um ano antes de morrer, chamado "Adamastor" em homenagem ao pai que acabara de morrer, Glauber disse realmente que tinha "morte sem data", e ainda me preveniu: "Breve você vai ter uma grande tragédia na sua vida, porque eu também vou morrer". Ele sempre dizia que ia morrer aos 42 anos. Do Festival de Veneza, escreveu-me dizendo que gostaria que eu conseguisse reunir toda a obra dele, publicasse algumas coisas e montasse uma retrospectiva com seus filmes. Assim, ele "dormiria em paz".
Folha - Naquela época, ele ainda não estava doente.
Rocha - Não, não estava doente. Ele não morreu de doença. Ninguém me convence.
Folha - Especulou-se muito que ele teria morrido de Aids...
Rocha - De Aids, de câncer no pulmão. Não foi nada disso, ele não estava doente, ele morreu de tristeza. Não tenho medo de publicar isso no jornal: meu filho morreu de Brasil.
Folha - Como foi a derrota de "A Idade da Terra" em Veneza e toda a polêmica em torno disso?
Rocha - Além do que saiu na imprensa, tenho de fonte segura apenas o que me informou meu sobrinho Quim, assistente de Glauber: alguém teria informado Glauber de que o prêmio era dele e, ao mesmo tempo, estava sendo anunciada a premiação de Louis Malle. Glauber ficou furioso, brigou com Malle que lhe deu um bofetão, Glauber revidou e saiu para fora do Lido, falando, gritando, mas não estava nada drogado, estava superlúcido. Dois anos depois, com Glauber já morto, houve uma grande retrospectiva da obra dele, na mesma Veneza.
Recentemente, quando Malle esteve no Brasil e deu uma entrevista na televisão, fiquei surpresa, porque ele só falava de Glauber. Chegou até a dizer que Glauber o ensinou a fazer cinema. Aliás, não é só o Malle que diz isso. Scorsese disse que começou a trabalhar melhor seus filmes depois que viu "Terra em Transe", que ele restaurou. Mas seu filme do coração, segundo diz, é "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro".
Folha - Voltando ao Tempo Glauber: afinal, a sra. teve que cuidar sozinha do acervo?
Rocha - Glauber ainda não tinha terminado "A Idade da Terra", quando o filme foi convidado para concorrer em Veneza. E não havia mais dinheiro. Eu tinha uma bela casa, na rua das Palmeiras, de que tenho muita saudade, era o único bem que me restava. Fui uma moça rica, mas todo o meu dinheiro investi no Cinema Novo e nos filmes de Glauber. Então, ele me perguntou se eu teria coragem de vender a casa, porque "A Idade da Terra" era "o filme da sua vida". Eu não podia ver Glauber infeliz. Então, vendi a casa para ele terminar o filme e ir para a Europa. O trato era que, quando ele voltasse, compraria uma outra casa para mim, ou a mesma.
Mas daí aconteceu aquilo tudo com "A Idade da Terra" e um ano mais tarde, tive a infelicidade de receber meu filho morto. Para mim foram três anos de muito sofrimento: morreu minha filha Anecy, depois meu marido e por fim Glauber. Perdi totalmente o sentido da vida. Sofri uma angina e fui operada do coração. Mas decidi que eu tinha que viver para cuidar do acervo de Glauber. Procurei Antônio Carlos Magalhães, na época governador da Bahia. Ele me disse: "Não apenas quero ajudá-la, como posso e vou". Só que nunca ajudou.
Folha - Como ocorreu a instalação do acervo no Rio?
Rocha - Foi Darcy Ribeiro, então vice-governador do Rio, que me escreveu sugerindo que eu trouxesse o material para o Rio. Mas eu estava num dilema terrível, porque Glauber tinha me pedido para trazer tudo para a Bahia. Então, recebi uma carta de Heloísa Buarque de Holanda, na época diretora do Museu da Imagem e do Som do Rio, oferecendo-me o museu para a instalação do acervo. Daí, pensei: o Brasil todo é de Glauber, e trouxe o acervo para o MIS.
Foram oito anos que trabalhei sem muitas preocupações com despesas. Empenhei-me em reunir a obra de Glauber, que estava espalhada pelo mundo inteiro. Cada vez que vou a um festival, até hoje, trago material. Carlos Augusto Calil também me ajudou muito. Trouxemos todos os filmes, que foram depositados na Cinemateca Brasileira.
Folha - Como ocorreu a saída do MIS?
Rocha - Com as sucessivas mudanças da diretoria do MIS, fui sendo abandonada. No tempo de Maria Eugênia Stein, fui ameaçada de ser mandada embora de lá. Aí um dia eu vi Waldir Pires fazendo um discurso na televisão, dizendo que o Iapas tinha muitas casas bonitas, mas que estavam se acabando com o tempo, e as oferecia a quem tivesse interesse em ocupá-las para atividades culturais. Na manhã seguinte, liguei para ele e fui a Brasília, com a fotografia desta casa, que eu já conhecia. Acabei conseguindo o imóvel, mas era uma "casa em transe", cheia de lixo e ocupada por mendigos. Foi um sacrifício conseguir reformar. Até hoje, aqui, não há nem ar-condicionado. É só essa casa maravilhosa, um acervo riquíssimo e mais nada.
Folha - De onde vem o sustento regular da casa e do acervo?
Rocha - Não existe essa renda regular, vem tudo do meu trabalho. Não tenho empregados. Sou funcionária da Funarj, onde ganho um salário de R$ 450.
Folha - Quais são os principais materiais contidos no acervo?
Rocha - O acervo guarda 60 mil documentos, que são: roteiros de filmes, peças de teatro, letras de música, poemas (são mais de 600 poemas, dos quais eu já publiquei 32), romances, livros sobre diversos assuntos, uma enorme correspondência de Glauber para pessoas do mundo inteiro, fotografias, artigos de jornal, uma grande quantidade de artigos inéditos e centenas de desenhos e pinturas. Uma parte da correspondência está sendo agora selecionada por Ivana Bentes.
Folha - Poderia falar dos desenhos e pinturas?
Rocha - São cerca de 600 desenhos e pinturas. Glauber desenhava constantemente, em qualquer circunstância. Depois, amassava o papel e jogava fora. Eu recolhia um por um, passava a ferro, cobria com papel de seda e guardava num baú. Fiz isso desde que Glauber era adolescente. Guardei também todos os seus cadernos. Ele tinha nove anos quando escreveu uma peça de teatro chamada "El Hilito de Oro", que montou, dirigiu e representou. E eu fiz o figurino.
Folha - Poderia contar um pouco sobre os livros inéditos?
Rocha - São 40 livros selecionados por mim, afora os roteiros e as peças de teatro. Por exemplo, a biografia de Jango, que está nas mãos de Carlos Augusto Calil, e que eu chamo de "Jangarana". Tem cerca de 800 páginas. Há ainda uma peça de teatro e um roteiro de filme, ambos baseados na vida de Jango. A peça está nas mãos de Luís Carlos Maciel. Há cerca de 40 mil materiais catalogados e outros 20 mil a catalogar, conservados precariamente. Mas eu não tenho condições de continuar esse trabalho. É preciso informatizar o Tempo Glauber, é preciso dinheiro.
Folha - Não existe algum projeto de financiamento?
Rocha - Fiz um projeto, com Ana Pessoa, que apresentei a diversas pessoas, inclusive ao Ministério da Cultura, mas nada adiantou. O Ministério da Cultura prometeu me dar R$ 100 mil e deu apenas R$ 1.000. Depois ainda fica cobrando. Agora estou organizando algo para ver se melhoro as finanças do Tempo Glauber, que é a Sociedade dos Amigos de Glauber. Quero ver se consigo contratar dois empregados para trabalhar comigo. Com meus 77 anos, já não posso trabalhar sozinha.
Folha - Qual foi o papel de José Sarney no Tempo Glauber?
Rocha - Sarney me apresentou para o diretor do Banco do Brasil, e o banco fez uma doação que garantiria o acervo por muito tempo. Eles depositaram o dinheiro no dia 22 de fevereiro e, no dia 16 de março, Collor pegou tudo... Até então, o dinheiro era pouco, mas existia. Depois disso, tive que mandar os quatro empregados embora, que foram me processar na Justiça do Trabalho. Tive um gasto enorme com isso, por causa da inflação. Tem sido, portanto, muito difícil. Já tive vontade de vender o acervo para o exterior. Já tive propostas.
Folha - Sarney também ajudou no financiamento de "Terra em Transe", não é?
Rocha - Sim. Glauber fez "Maranhão 66" sobre a posse do Sarney como governador do Maranhão. Sarney conta que Glauber um dia chegou a ele dizendo que precisava de dinheiro para fazer um filme (que seria "Terra em Transe"). Sugeriu, então, que ele filmasse sua própria posse. Glauber aceitou, filmando não apenas a posse, mas também as misérias do Maranhão. Quando Sarney viu o resultado, mal pôde acreditar -porque, de início, tinha tido péssima impressão de Glauber.
A partir daí, tomou-se de amores por ele. E Glauber amava Sarney. Quando se sentia angustiado, nervoso com a política e não conseguia dormir, sobretudo depois da morte de Anecy, ele pegava o avião e ia para Brasília, às vezes não tinha nem dinheiro. Ligava para Sarney, que lhe dizia: "Vem, Glauber".
Folha - Glauber frequentemente se posicionava como um político, chegava a falar que seria governador da Bahia ou presidente do Brasil. Era sério ou provocação?
Rocha - Era sério. Um dia, logo antes de Veneza, ele me disse: "Convidaram-me para ser ministro da Cultura, mas antes tenho que ser governador da Bahia". Acho que ele pensava em ser governador, depois ministro e daí, quem sabe, presidente da República. Com relação à política, Glauber tinha umas profecias fantásticas. Num artigo de jornal que temos aqui, ele escreveu que, nos anos 80, quando o Brasil despertasse para a democracia, "muita gente que está deitada em berço esplêndido vai se levantar e se candidatar a presidente da República, um deles Tancredo Neves". E terminava: "Só que os anjos não vão deixar. Deixem que os poetas governem o Brasil!" Glauber também falou muitas vezes nos jornais que Fernando Henrique seria presidente da República. Ele o chamava de "o príncipe". Fernando Henrique leu e guardou essas entrevistas.

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