São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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Mapa de uma poética

DUDA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma parte essencial da poesia norte-americana deste século, identificada sob os rótulos de objetivismo e de Black Mountain, só começou a sair do esquecimento e do não-reconhecimento a partir da década de 60. Os "objetivistas" constituem um caso extremado deste esquecimento, já que Louis Zukofsky, George Oppen, Charles Reznikoff, Carl Rakosi (mais o inglês Basil Bunting) iniciaram, a partir do final da década de 20, uma obra voltada para a renovação da linguagem da poesia, a partir dos modelos de Ezra Pound e Williams Carlos Williams.
É este mesmo vínculo que marca, já na década de 50, os poetas agrupados em torno da "Black Mountain Review", como Charles Olson, Robert Creeley, Robert Duncan, Denise Levertov, Paul Blackburn, Larry Eigner. Mas não se pense que estamos apenas a desfilar nomes à maneira de um catálogo ou a realçar de modo indevido meros epígonos.
Todas essas obras, em que pese até mesmo a desigualdade de algumas delas, estão marcadas pela qualidade, pela marca renovadora, assim como por notáveis diferenças de foco e dinâmica de composição.
Neste mapa de linhagens poéticas que estamos traçando com a ajuda da cronologia, devemos acrescentar ainda o surgimento da poesia beat e da escola de Nova York (Frank O'Hara, John Ashbery), já em meados da década de 50. Note-se também que até a década de 50, quando da publicação do seu longo poema "Paterson", a poesia de Williams ainda era ignorada pela crítica. Para completar o quadro das redescobertas, é preciso assinalar a da obra de Gertrude Stein, cujo influxo repercute sobre poetas tão diferentes como Ashbery e David Antin.
Estamos tratando aqui de uma poesia de caráter renovador, ligada à herança modernista, mas capaz de refazê-la constantemente segundo o lema poundiano do "make it new". (Há, como se sabe, uma outra configuração, formada por uma poesia mais "tradicionalizante" e representada a grosso modo por poetas como Robert Frost, Robert Lowell e Elizabeth Bishop, por exemplo.)
Diante deste conjunto de obras inovadoras, Jacques Roubaud, empenhado ao lado de outro importante poeta, Michel Deguy, na divulgação da poesia norte-americana com a finalidade talvez de contribuir para a renovação da própria poesia francesa, pôde afirmar: "A literatura americana, na segunda metade do século 20, é a poesia, a explosão da poesia".
Roubaud está se referindo à qualidade desta poesia e não à reviravolta ocorrida no contexto de sua recepção, caracterizada hoje em dia pela assimilação dos poetas pelas universidades e pelo hábito dos "readings".
A riqueza deste panorama pode até mesmo explicar em parte a discussão sobre qual a herança predominante: se a de Pound ou a de Wallace Stevens, que opõe críticos como Marjorie Perloff e Harold Bloom, este último anexando Ashbery, William S. Merwin e Ammons ao domínio da poética de Stevens, enquanto Perloff procura incluir os recentes "language poets" na trilha poundiana. (Mas por que excluir Williams desta disputa entre "fundadores"?)
Referimo-nos ao impacto de Pound e Williams sobre os "objetivistas" e sobre o grupo Black Mountain, no sentido da continuidade de uma tradição de renovação, desde que compreendida como uma constante reavaliação. Assim, Zukofsky em seu longo poema "A", composto de 24 movimentos, ao mesmo tempo em que traz como referência a composição fragmentária dos "Cantos", de Pound, mostra-se rigorosamente original em relação a seu modelo e representa ainda uma espécie de réplica à visão de seu mestre.
Um de seus fragmentos, "A 9", incorpora o "Capital", de Marx, e a "canzone" "Donna Mi Pregha", de Guido Cavalcanti. Além disto, Zukofsky não está interessado numa seleção de momentos arquetípicos da civilização, já que recusa também a faculdade orientadora dos mitos para a época moderna, como observa Hugh Kenner.
Um outro paralelo baseado neste duplo movimento de convergência e de réplica pode ser encontrado na relação entre o "Paterson", de Williams, e o "Maximus", de Olson (dedicado a Robert Creeley) -ambos têm como ponto de partida temático uma pequena cidade americana, um poeta como personagem central, além de incluírem a reflexão sobre a poesia e procurarem integrar poema e prosa.
Se George Oppen enfatiza a importância das pequenas palavras que devem "ser reveladoras, uma música", o mesmo poderia ser dito por Creeley, apesar de tudo quanto distingue seus mundos de composição e percepção.
É por este prisma de uma permanente reformulação que talvez se possa captar um dos traços básicos da poesia americana. O "verso projetivo" de Olson procura retomar a agudeza da técnica de cortes de Williams e seu caráter visual. Quando se evoca a fórmula de Olson sobre a respiração do poeta como o modo de composição da linha do poema, esquece-se que, para ele, esta respiração também está modulada pelos recursos tipográficos criados pela máquina de escrever.
Nesta retomada, Creeley torna ainda mais drásticas as descontinuidades sintáticas e a concentração verbal, voltando-se para uma dimensão mais subjetiva, ao mesmo tempo em que mantém o preceito poundiano -que ultrapassa em muito o âmbito limitado do imagismo- do "tratamento direto da coisa, quer objetiva quer subjetiva".
Esta poética encontra-se drasticamente definida por ele mesmo, quando afirma que seus poemas procuram ser "um eco mais vivo do subconsciente ou da experiência interior", em que as palavras "retornam a um estado quase objetivo de presença, de modo que elas 'falam' em vez de que haja alguém falando por meio delas".

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