São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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África do Sul revê propriedade da água

EDDIE KOCH
DA "NEW SCIENTIST", EM JOHANNESBURGO

Para os habitantes de Moutse, um grupo de assentamentos rurais a leste de Johannesburgo, o suprimento de água não deveria ser motivo de preocupação. Eles vivem perto da enorme barragem de Loskop, alimentada pelo rio Olifants, um dos maiores da África do Sul.
No entanto a falta de água nesses assentamentos é constante. A água é trazida diariamente por caminhões-pipas e é racionada. Por causa de leis aprovadas cem anos atrás, as pessoas não têm acesso à água, presente em abundância praticamente às suas portas.
A água da barragem Loskop pertence a alguns poucos fazendeiros brancos que a usam para irrigar seus imensos campos de trigo, milho e laranjeiras. Na África do Sul, a água não é considerada patrimônio nacional -ela pertence aos indivíduos por cujas terras passa. Assim, a água do rio Olifants pertence por direito aos fazendeiros cujas terras o rio atravessa. Os habitantes dos assentamentos vizinhos têm de passar sede.
O consultor particular Simon Forster, um dos maiores especialistas sul-africanos em recursos hídricos, diz que as grandes fazendas de proprietários brancos na área de Loskop usam tanta água que durante a estiagem recente "literalmente não sobrou um copo d'água" do rio Olifants para suprir as necessidades dos assentamentos de Moutse. Ele afirma que os latifundiários têm direito legal e capacidade técnica de secar muitos rios, especialmente durante os períodos de fluxo de água reduzido. Forster observa que um número relativamente pequeno de fazendeiros controla a maior parte da água utilizável do país.
Projeto do governo
Mas essa injustiça está prestes a ser corrigida. O ministro de Recursos Hídricos do governo Nelson Mandela, Kader Asmal, está preparando um controvertido projeto de reforma que quer mudar o antiquado sistema nacional de direitos ripícolas. Asmal está empregando um exército de técnicos e cientistas para traçar um esquema que deverá assegurar a utilização justa e sustentável dos recursos hídricos sul-africanos. Em fevereiro, ele divulgou um documento para discussão que promete que "não haverá propriedade da água, mas apenas o direito à sua utilização". O governo, segundo Asmal, quer "criar um sistema uniforme de alocação de direitos à água, sob controle total do Estado".
A reforma é necessária e deveria ter sido feita há muito tempo. Os habitantes de Moutse figuram entre os 14 milhões de sul-africanos -de uma população total de 40 milhões- que têm acesso insuficiente ou nenhum à água. Num relatório compilado em 1994 pela Unidade Sul-Africana de Pesquisas sobre Mão-de-Obra e Desenvolvimento, da Universidade da Cidade do Cabo, mais de 56% dos habitantes da Província do Norte citam o fornecimento de água limpa como o serviço mais importante que esperam de um governo democrático.
"O Estado exerce pouco controle sobre o que um proprietário de terras faz com sua água", escreve Forster em um documento preparado para o Centro de Política Fundiária e Agrícola, um centro de pesquisas em Johannesburgo que ajuda o novo governo a preparar a reforma fundiária e hídrica.
Ele explica que os direitos ripícolas foram outorgados quando os recursos hídricos eram pouco utilizados. A meta do governo é fornecer a todos os sul-africanos água limpa em quantidade suficiente para suprir suas necessidades básicas -cerca de 25 litros diários por pessoa. Mas ele enfrenta a oposição acirrada dos proprietários de terras, que pagam algumas das taxas mais baixas do mundo pela água e não querem mudar para um sistema que sem dúvida os obrigará a pagar mais.
Opositor
Boet van Rensburg, um fazendeiro africânder dono de uma enorme fazenda produtora de milho na região do reservatório do rio Olifants, diz: "Se o governo vai tirar nossa água para reparti-la com outros, rio abaixo, terá de avaliá-la e nos pagar pelo que nos vai tirar. Qualquer tipo de nacionalização da água enfrentará resistência dos bôeres".
Geoff Budlender, advogado constitucionalista que ajudou a redigir a proposta da reforma hídrica, reconhece que a resistência dos fazendeiros conservadores brancos deverá ser ainda mais acirrada do que sua oposição ao programa de reforma agrária.
Segundo o programa, 30% das terras nacionais serão entregues a pessoas que, sob o regime do apartheid, eram completamente carentes. Reconhecendo que tecnologias que poupam água podem reduzir a dificuldade política em implementar a reforma, o ministro Asmal encomendou a cientistas o desenvolvimento de novas tecnologias de conservação da água.
Técnicos da Comissão de Pesquisas Hídricas (CPH) em Pretória visitaram Israel para descobrir como o país lida com a escassez de água. Eles retornaram com planos para a construção de sistemas modernos de irrigação por micropulverização e gotejamento.
"Esses sistemas são caros, e os agricultores nunca chegaram a usá-los porque a água custa pouco neste país", diz o engenheiro-chefe da CPH, David van der Merwe.
Com os novos projetos, o governo quer reduzir a concentração de sais nos rios e ao mesmo tempo reduzir o desperdício de água.
Mas o governo tem uma árdua tarefa pela frente. As novas tecnologias podem levar anos para reverter o legado de poluição nos rios. E as reformas terão de satisfazer não apenas ao povo das aldeias onde falta água, mas também aos grandes fazendeiros.

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