São Paulo, terça-feira, 7 de maio de 1996
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Dívida social deve ser paga, afirma FHC

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O presidente Fernando Henrique Cardoso disse ontem, durante reunião de avaliação das ações sociais do governo, que "a dívida social, que é imensa (...) tem de ser paga em prestações -mas tem de ser paga". FHC dicursou durante uma hora e 21 minutos.
Segundo o presidente, "a sociedade está cada vez mais ansiosa por resultados, cada vez menos tolerante, ao ponto tal que se dá a impressão que se quer que a dívida social seja paga em um ano".
Leia a seguir a íntegra do pronunciamento feito pelo presidente a uma platéia que contava com a presença de 11 ministros e cerca de 50 representantes de entidades ligadas à área social.
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Boa tarde,
Eu queria aproveitar a oportunidade deste encontro para nós fazermos um balanço sobre a ação social do governo e sobre a parceria do governo com a sociedade na área social, para que nós possamos discutir o caminho que vem sendo trilhado, e o que pode ser feito.
Obviamente, aqui é um encontro no qual nós temos pessoas que participam de diferentes conselhos do governo, dos vários conselhos sociais que existem no governo e, no caso específico, do conselho da Comunidade Solidária. E eu queria aproveitar para lhes dizer que as informações que lhes vou prestar e as diretrizes que vão ser apresentadas constituem a ação do governo, num espaço amplo da administração pública. Não se trata apenas de um setor, por exemplo, do Comunidade Solidária, ou o que acontece no Ministério da Educação, mas um conjunto.
E, como é de praxe neste governo, essas diretrizes e essas proposições não são fechadas, ou seja, elas não têm o propósito de dizer: "Eis aqui o que nós estamos fazendo e o que nós vamos continuar fazendo, porque o que está feito está bem feito". Não é isso. É para mostrar, em primeiro lugar, o que estamos fazendo e o porquê de o estarmos fazendo. E, em segundo lugar, para que os conselhos possam, efetivamente, a participar da elaboração e do aprimoramento das práticas que vêm sendo executadas pelo governo. Não teria sentido existirem conselhos, se esses conselhos não tiverem a capacidade de agir. Alguns deles são completamente autônomos do governo, enquanto administração, mas não teria sentido a existência desses conselhos se eles não pudessem influir sobre as decisões, embora, naturalmente, as responsabilidades de decisão sejam sempre do Executivo e, especificamente, no caso de quem fala, na medida em que existe uma delegação para a autoridade, através do voto popular.
Mas o nosso mecanismo de funcionamento é um mecanismo que supõe esse relacionamento, bastante aberto. E eu queria aproveitar, também, o ensejo de estarmos juntos aqui, esta tarde, para agradecer a cooperação que nós temos recebido, sobretudo no caso específico do conselho que hoje está reunido, que é o do Conselho da Comunidade Solidária, que se transformou, talvez até mais do que numa instância de mobilização da sociedade, num fórum, para formular projetos, criticar. E assim mesmo deve ser, e eu tenho a convicção de que os demais conselhos têm, também, essa mesma capacidade, que é o que mais desejo, e que se expanda e se mantenha.
Eu acho que é preciso deixar bem claro que, uma vez que nós já conseguimos -e isso é mérito do país- o fortalecimento e a regularização dos mecanismos democráticos no Brasil, nós temos uma sociedade, hoje, até mais do que simplesmente umas instituições políticas e democráticas, uma sociedade democrática, e que nós estamos em caminho firme, para alcançarmos a estabilização da economia, nós temos que mostrar que é necessário, claramente, tomar como algo central nas nossas preocupações a promoção da reforma social no nosso país.
Nós temos falado, com muita insistência, eu falei desde que fui senador, ministro do Exterior, ministro da Fazenda e agora presidente da República, em campanha, e fora de campanha, eu tenho insistido muito no tema das reformas. E os que me escutaram no discurso de posse, ou em alguns dos discursos que fiz, no início do governo, hão de se recordar que eu disse que não se tratava, pura e simplesmente, de fazer uma reforma, ou um ato que simbolizasse uma transformação, mas que o Brasil requer que a atividade do conjunto do governo, em franca interação com a sociedade, se transformasse numa atividade de reformas contínuas, e que eu teria empenho em acelerar processos de transformação, até o último dia do meu governo.
Pois bem, se a democracia está assegurada, se nós estamos caminhando no sentido da estabilização econômica, é fundamental que agora o tema da reforma social seja um tema central, na estratégia de ação do governo. Sem isso nós não vamos, evidentemente, fazer com que a sociedade alcance aquilo que deve ser o objetivo -e se eu pudesse me inspirar nos clássicos- da felicidade.
A boa administração, a boa condução de governo deve buscar a felicidade. Isso eram os termos clássicos. Hoje essa palavra pode soar um pouco subjetiva mas, na verdade, é o bem-estar. Trata-se, portanto, de promover condições, não só de democracia formal, mas de acesso às possibilidades do exercício das potencialidades de cada ser humano dentro de um quadro de democracia.
Então essa questão é, realmente, uma questão do ponto de vista estratégico das ações de governo, uma questão central, embora possa, muita vezes, não aparecer assim.
Entretanto, nós devemos fazer, com essa questão social, com a questão das reformas e as transformações nas ações sociais, o mesmo que nós fizemos na área da economia.
Ou seja, na área da economia o Brasil chegou a um ponto que ele não aguentava mais. Eu tenho repetido à sociedade, que a estabilização da nossa moeda, que o Real foi simplesmente um desejo profundo do país. O país tinha cansado da inflação e da desordem e percebeu o quanto essa inflação e essa desordem haviam minado as possibilidades da realização nacional, pessoal, do progresso global e do progresso de cada um e que era preciso ir às causas que levavam à inflação.
E se algum êxito nós pudemos ter tido e estamos tendo nesta matéria, foi porque nós nunca ficamos paralisados por ações demagógicas. Nós nunca tentamos - e quantas vezes eu fui instado a resolver a questão dos preços prendendo dono de supermercado. Naquela época, todas as pessoas que tinham, até sinceramente, vontade de parar com a inflação, achavam: "se fizer um ato exemplar, prende um que dá certo". Não dá certo nada. Simplesmente é uma espécie de vingança coletiva que recai sobre a cabeça de alguém, embora alguns merecessem ir para a cadeia, por outras razões, por vários abusos. Mas seguramente isso não teria como consequência parar a inflação.
Nós fomos às causas do processo inflacionário, e levou muito tempo para que essas causas pudessem ficar visíveis à população. Eu acredito que hoje nós estamos dando uma demonstração tranquila de que foi possível, por esse mecanismo, combater a inflação.
Aqueles que disseram, e tantas vezes disseram, que o Plano Real era eleitoreiro, que o Plano Real não duraria muito, que era uma questão de três, quatro meses, que na verdade era a mesma mímica de sempre. Pois bem, hoje é difícil dizer que uma mímica que dura dois anos é mímica. Ou que tanto tempo depois das eleições o empenho tão profundo, tão forte, de todos nós, no sentido de mantermos a estabilidade da moeda, tenha sentido eleitoreiro, porque não tem. Ele tem um sentido profundamente social até, eu diria, de convencimento de que a inflação destrói as possibilidades de nós avançarmos nos demais setores da sociedade.
Então, aqui, também, nós temos que enfrentar, no caso da questão social, as causas efetivas, e não simplesmente fazermos brilharecos, lampejos de que estamos tendo um belo gesto. O país cansou de belos gestos apenas, que não têm consequência em seguida. Nós temos que, realmente, alterar profundamente as condições que reproduzem a miséria e a exclusão social.
Ou nós realmente enfrentamos essa questão com clareza, com tranquilidade, mas com muita firmeza, ou nós vamos simplesmente enganar a população. Quem aqui vos fala, e eu tenho certeza de que todos que aqui me ouvem e o país cansaram de enganação. Nós não vamos fazer isso.
As causas são muito grandes, são profundas. Também não é o caso, aqui, de eu estar fazendo um diagnóstico dessas causas e nem de nós nos atermos a um diagnóstico, porque também de diagnóstico já estamos cansados. Temos diagnóstico sobre quase tudo no país.
Evidentemente é possível, até, mostrar que há fatores até mesmo culturais que têm origem em uma estrutura social antiquada e antiga, desde a escravidão. Quem vos fala hoje escreveu alguns trabalhos sobre a escravidão, conhece de perto o problema e o que significou isso (...) da mentalidade da elite brasileira.
Nós temos uma cultura que aceitou conviver com a violência, a mais cruel, e que aceitou, inclusive, manter-se impávida com ideais libertários, democráticos, em uma estrutura social absolutamente injusta e encravada no processo da exploração é a mais brutal -pior do que isso não pode haver- é a escravidão, que leva à indiferença. Não é só a desigualdade. A escravidão gera a indiferença diante da desigualdade.
Já era famosa a formulação de que o escravo não era um ser humano; era um instrumentum vocalis - um instrumento que falava. Se ele é um instrumento que fala, ele não é um ser humano, então, como que se obnubila, como se fecha a consciência da sociedade à compreensão efetiva da tragédia que era a escravidão.
E isso permaneceu, não só como background cultural, como alguma coisa que ficou motivando os sentimentos e os não-sentimento, uma espécie de leniência, de aceitação da injustiça que não aparece nas palavras, mas no quotidiano permaneceu muito vivo, como também levou a que, quando foi feita a abolição da escravatura, a primeira grande massa de excluídos continuasse excluída, porque antes, na verdade, não eram excluídos, eram incluídos em forma perversa, mas era um sustentáculo da economia. Depois da abolição deixaram de ser sustentáculo da economia e passaram a ser excluídos da sociedade e não tiveram uma integração -não vou, também, fazer aqui sociologia do desenvolvimento da sociedade brasileira- mas passaram a ser uma grande massa de marginais, de excluídos. A grande massa inicial de excluídos foi essa. E, dramaticamente, vieram a ser substituídos por aqueles que tinham sido excluídos da Europa.
A Europa expulsou cerca de 60 milhões de pessoas quando a pobreza, por causa da modernização lá, também no outro século, bateu no campo duramente. Eles expulsaram, migraram 60 milhões de pessoas que vieram tentar as Américas e ocuparam os lugares, na forma produtiva direta, dos escravos que passaram a ser excluídos.
É claro que isso pesa como explicação dessa situação que nós temos. Mas há mais do que isso. É que nós tivemos um processo de desenvolvimento econômico que criou uma espécie de relação perversa nos planos econômicos entre a ação econômica e a ação política.
Tudo parecia ser pensado no Brasil da seguinte maneira: cabe à política social corrigir os desmandos da política econômica. A política econômica é o eixo, tudo se faz para acumular, crescer, investir, transformar. Esse processo leva um certo desgaste, tem que ser compensado pelas políticas sociais.
Essa era a visão absolutamente normal, e com várias expressões. Primeiro, cresce o bolo, depois distribui, de má memória. Ainda bem que os que faziam bolo naquela época hoje querem ser comedores de bolo, mas de outra maneira. Já não mantêm mais essa visão de que primeiro faz o bolo, depois distribui, porque no fundo era isso. Primeiro cresce a economia depois se cuida, via política social. E política social muitas vezes quer dizer assistencialismo, boas ações, para corrigir o que era incorrigível na proporção gerada por uma política social perversa.
Pois bem. Eu acho que é fundamental, agora, que nós mudemos isso. O que aconteceu com essa política social é que, sobre uma base de herança escravocrata, o que aconteceu foi que houve a acumulação de novos fatores de desagregação, de novos fatores de perversão no que diz respeito aos aspectos sociais. E quando houve aceleração do processo inflacionário, se agravou enormemente a concentração de renda. E se a concentração de renda no passado estava baseada na terra, porque a escravidão era terra, propriedade concentrada, propriedade sobre o trabalhador, como se fossem instrumento, mais tarde essa concentração teve outro aspecto e, mais recentemente, com a aceleração inflacionária foi a concentração financeira.
Chegamos a uma distorção de tal natureza que nós tivemos 13% do produto brasileiro, da renda nacional, era apropriado pelo sistema financeiro.
Esse percentual baixou para quase 14%. É 13,9%. Esse percentual baixou, hoje, para 8%, com a estabilização. Por que? Porque, na verdade nós passamos a conceber a política de estabilização de maneira diferente.
E aqui eu venho ao ponto. Não se trata, hoje, de pensar, quando eu disse aqui que nós temos que colocar no centro a reforma social, nós não podemos pensar com as categorias do passado, que imaginariam da seguinte maneira: a economia vai para um lado e ninguém olha para ela, mas ela continua aí, e continua causando desastres. E nós nos concentramos em corrigir esses desastres na ação social. Isso não vai dar certo, isso não funciona, porque sempre haverá uma proporção crescente de deserdados em face do tipo, do modelo de desenvolvimento econômico proposto.

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