São Paulo, terça-feira, 7 de maio de 1996
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Dívida social deve ser paga, afirma FHC

Aqui nós estamos propondo uma coisa diferente. E eu volto ao plano de estabilização que nós propusemos. Nós nunca aceitamos que fosse possível fazer a estabilização às custas de um acrescentamento das mazelas sociais.
Daqui a pouco daremos os dados a esse respeito, mas é que é preciso entender que nosso objetivo foi o de fazer uma estabilização que nela própria contivesse mecanismo que levassem à distribuição de renda e que essa renda fosse apropriada pelos que nunca tiveram acesso a ela. Que a renda que era apropriada pelo sistema financeiro e pelos governos, que era a grande renda inflacionária, que ela passasse, fosse transferida a outras mãos.
Mas a concepção aqui, ou se muda essa concepção ou se se mantém a idéia velha de que é preciso pensar na economia separada do social, e essa idéia velha leva a um esgotamento das possibilidades de transformação das sociedades.
Mas não é só isso não. Nós, além disso, para explicar como chegamos a esse quadro de desigualdades crescentes no Brasil, temos que entender, também, que nós realmente manejamos mal as nossas política sociais.
Não vou repetir o que todo mundo já sabe, mas basta olhar o que está acontecendo nas pesquisas feitas, por exemplo, pelo Banco Mundial, que é mais que conhecido, para ver que nós não utilizamos os mecanismos de política social, que são sempre necessários, porque evidentemente o que eu disse há pouco que nós temos que conter, no cerne mesmo, do modelo de desenvolvimento econômico, medidas que levem ao desenvolvimento social, isso não significa que elas substituam as políticas sociais. Não! Nós temos que ter políticas sociais específica.
E nós, ao manejarmos as nossas políticas sociais muito frequentemente, nós as manejamos de modo a reproduzir o padrão de desigualdade e de injustiças.
Eu creio que, se nós pudéssemos olhar, agora, um gráfico a respeito dos gastos sociais em alguns países para comparar e para verificar o que acontece neste gráfico -está aparecendo no telão em algum lugar? Este gráfico mostra o seguinte: ele pega alguns países selecionados com base no PIB de 1992, e, nesse gráfico vê-se o seguinte: pode perceber que o Brasil está aí próximo da Malásia, tem a renda per capita e o gasto social.
E vamos ver aqui: com a renda per capita equivalente à nossa, o Chile já tem um gasto social maior. Entretanto, em conjunto, o gasto social do Brasil, comparado com Cingapura, Coréia, México, Malásia, Chile, Tailândia e Colômbia, é elevado. Reparem que o gasto social está, aí, na coluna azul, em azul. A renda per capita, no vermelho. Ele é elevado.
Agora, se olharem, entretanto, o próximo gráfico, que eu peço que apresentem aí, vão ver o seguinte: que, no Chile, os 20% mais pobres recebem desse gasto social 36,3%; e, no Brasil, 15,5%. Agora, olhem os mais ricos. Os 20% mais ricos -está na última linha, no Chile, recebem 4%; no Brasil, 20,9%.
Então, não basta perguntar se está gastando muito ou pouco, que é a pergunta que sempre me fazem. Sempre me fazem a mesma pergunta: aumentar o gasto? Eu digo: não adianta. Repara bem, no quadro anterior, que o gasto social é elevado porque ele é mal distribuído. As políticas não são eficientes para chegar, para atender àquelas camadas, que são as camadas que mais necessitam. Então, nós podemos ter, no gasto social, se nós não mudarmos a nossa mentalidade, a reprodução da desigualdade. E, ao aumentar o gasto, ao invés de diminuir as diferenças, vamos mantê-las, quando não ampliá-las.
Portanto, as políticas sociais têm que mudar de ênfase. E, com isso, eu não estou querendo dizer que não se deva analisar quanto se gasta em cada item, nem olhar no orçamento de forma adequada, o que isto vai significar, mas significa que essa pergunta, em si mesma, não tem sentido, se ela não estiver inserida na outra questão de como é que se gasta. Gasta-se bem ou gasta-se mal? A quem se atende com esse gasto? Aos que mais necessitam ou aos que menos necessitam?
Pelas razões que eu mencionei, que vêm desde a escravidão, da sociedade assimétrica, pelo fato de que a economia foi pensada como uma economia que não tomava em consideração, dentro do âmago dela, seus efeitos sobre a questão social, e pelo fato que o próprio manejo das políticas sociais eram do jeito que ainda está, ou seja, um jeito que acabou por reforçar a desigualdade, o fato de que nós criamos aqui bolsões de miséria, que requerem uma ação específica muito forte na questão da saúde, da educação, do saneamento, enfim, uma ação focalizada (...) para permitir que esses setores mais desamparados possam vir a ter uma situação mais favorável, em comparação com o que outros segmentos da população brasileira já conseguiram alcançar.
E quando eu disse, tantas vezes -e repito sempre-, que o Brasil não é um país subdesenvolvido, é um país injusto, é por esta razão, é porque os recursos existem, tanto os recursos de renda -a nossa renda per capita subiu suficientemente-, quanto os recursos disponíveis para o gasto público, mas ele se mantém, ainda, dentro de um padrão de injustiça, e é esse padrão de injustiça que está sendo mudado.
E, para ser mudado, ele requer uma ação conjunta da sociedade, porque não se trata também da ação do Executivo, só. Não se trata da ação do federal, só. É federal, é estadual, é municipal, mas se trata da ação da sociedade, em conjunto, porque, se a sociedade não estiver alerta e atenta, o que vai acontecer? As camadas mais poderosas farão pressão, e farão pressão sobre o Legislativo, sobre o Executivo e, depois, sobre o Judiciário, para dirimirem em seu favor, de tal maneira que se reproduza o mesmo padrão.
Isso não é uma questão de administração. É uma questão política. É uma questão política que exige, aí, sim, uma estratégia conjunta, que leve a uma parceria crescente entre os vários segmentos da população e que, pelo menos nessa questão, que é vital para o Brasil, é vital para a democracia, é vital até mesmo para a nossa chance de desenvolvimento futuro, que, pelo menos nessa questão, nós não tenhamos a miopia governo-oposição, a miopia partido tal ou qual, a miopia de quem fez isso ou quem fez aquilo, a miopia de quem brilhou mais do que quem. Não dá para nós termos, abrigarmos na nossa prática de hoje motivações menores, porque o desafio é muito grande, e nós temos a consciência de que nós podemos enfrentá-los se nós estivermos juntos, com o mesmo propósito.
Então, passou do limite em que nós podemos ser lenientes até conosco. "Conosco" não é só o presidente, com ele próprio, mas é cada um dos brasileiros, sobretudo os brasileiros que têm noção das coisas e que sabem que a sua ação, se ela for uma ação convergente, se somar à ação dos outros, pode modificar as questões.
Ora, nós temos, portanto, uma oportunidade grande, hoje, pelas razões que acabei de dizer, desde que haja participação, desde que haja uma indignação, se eu posso dizer assim, que não pode ser retórica, que não pode ser a indignação para acusar o outro. Tem que ser a indignação movida pela generosidade. E, mais do que pela generosidade, pela consciência de que está na hora, mesmo, não como demagogia, não para ganhar eleição ou voto, não para ganhar prestígio e nem coluna de jornal, nem espaço da televisão, mas para fazer com que aqueles que estão precisando sintam os efeitos de uma ação convergente.
É um grande momento que o Brasil vive hoje. É um grande momento porque nós podemos fazer essas transformações, há condições de que nós mantenhamos esse espírito. É claro que, a partir do que eu disse aqui, o que nós podemos chamar com essa estratégia, com essa visão global, nós podemos dizer que nos temos uma política social que tem que ser abrangente. E abrangente, aqui, quer dizer o seguinte, basicamente: quer dizer, primeiro, que, no pensar o econômico, e tem que pensar o econômico, imediatamente, como alguma coisa que tem efeito social e não como alguma coisa que seja qual venha a ser o seu efeito, depois nós corrigimos pelas políticas sociais. Não. Mas nós temos, também, portanto, que articular muito melhor os programas sociais e o plano econômico não só de estabilização com o de crescimento, porque sem crescimento também não haverá solução para nenhum desses problemas.
Mas, se o que eu disse é verdadeiro, se há uma tendência inerente às estruturas prevalecentes a uma desigualdade, a uma simetria, a nossa responsabilidade fundamental é definir políticas sociais que, além de eficiência, elas tenham um caráter universal. Isso pode parecer banal dizer. Na verdade, é fundamento mesmo da democracia: a igualdade, mecanismos universais. A educação é a mesma, para todos: a saúde é a mesma, para todos. Essa característica, da universalidade, é fundamental, para que nos quebremos as assimetrias. Porque, na situação assimétrica tradicional, nossa, não é a mesma para todos. Mesmo que o serviço público se faça presente, em certas áreas, a utilização deles será uma utilização desigual, e será uma utilização em benefício daqueles que já têm condições de decisão, que já têm poder e que já têm recursos.
Essa questão de ser universal é a verdadeira questão da cidadania. Cidadania quer dizer isso, não quer dizer oura coisa, quer dizer a igualdade de direitos de oportunidades. E, atualmente, a consciência disso é a luta para estabelecer esses mecanismo. Então, nós temos que pensar a economia junto com o social, nós temos que pensar que as políticas sociais têm que ter esse caráter universal. E nós não podemos cruzar os braços, uma vez feito o diagnóstico e todos compartilham, diante dos bolsões de miséria e de pobreza, os quais precisam de ter uma política localizada.
Se o governo tomasse como política sua apenas aquilo que é a pobreza consolidada, digamos, o que o Comunidade Solidária cuida, não resolveria a questão. Porque os problemas universais não são atendidos pelos programas do Comunidade Solidária. O Comunidade Solidária não é universal. É, ao contrário, compensatório do passado que não foi unificador, que criou desigualdades. Então, a Comunidade Solidária mira, localiza os problemas cruciais, dos bolsões de miséria e de pobreza, onde faltou, no passado, a universalização.
Mas se o governo só fizer isso, ele reproduzirá, no futuro, uma situação errada, porque ele não terá atuado nos programas que são aqueles que atingem o conjunto da sociedade: educação, saúde, saneamento, habitação, e por aí vai. Penar cada um desses programas isoladamente é equivocado. Pensar a economia sozinha, pensar o social sozinho, pensar a pobreza sozinha é equivocada. Nossa visão estratégica tem que ser não só de participação, de valorização, mas de valorização desses aspectos todos, porque senão nós não resolvemos a situação. E hoje já existem instituições capazes disso.
Por isso -se me permitem passar em revista esses tópicos- eu diria que os planos econômicos e os programas sociais que nós estamos já implantando, vêm já com esta visão. Basta dizer o seguinte: o real não é uma moeda, a moeda é um símbolo -símbolo importantíssimo. Importantíssimo, porque é o símbolo da confiança no valor do resultado do seu trabalho. Quando alguém que trabalha recebe a moeda, ela não vai desaparecer do seu bolso. É um símbolo que tem a ver com a dignidade da pessoa. Moeda forte não quer dizer acumulação, não quer dizer monetarismo. Não! É um símbolo, um símbolo importante. Mas esse símbolo só se torna importante, na medida em que, efetivamente, ele praticamente, para as pessoas que detém a moeda, esta moeda signifique uma capacidade maior de acesso a certos bens. Ou seja, é preciso que ela, em si mesmo, haja uma distribuição de renda. E nós fizemos isso.
Eu peço que vejam, daqui a pouquinho, que não só o poder de compra aumentou imediatamente, a despeito de todas as análises erradas que foram feitas; os ganhos dos bancos e dos governos caíram. E, frequentemente, argumentos de má fé, se procura dizer: "Mas o governo está dando dinheiro para banco". Não! O governo está assegurando os depósitos de real que as pessoas têm, os pobres, a classe média, o setor produtivo, nos bancos. Porque quando um banco quebra, quem quebra não é o banqueiro, é o depositante; quem perde o dinheiro não é o banqueiro. Agora perde o banqueiro, quando se arresta o bem, mas o depositante não perde -daí o Proer, para garantir a possibilidade de que aquele que tem o seu dinheirinho possa continuar tendo esse dinheiro.
Mas o banco perdeu. E o sistema financeiro brasileiro está perdendo e, pela primeira vez, depois de muito tempo, com dificuldades, que também eu espero que sejam passageiras, e nos estamos lutando para que seja, porque nós não podemos ter um sistema econômico sólido sem um sistema financeiro sólido. Então, nós não temos nenhum temor de enfrentar esses problemas. Mas o importante é o outro, é que a população teve, realmente, uma melhoria na renda. E eu peço, então, que mostre aí uma tabela que diz o seguinte: como é que essa renda se verificou, o efeito dela foi imediato, é só verificar aí o que aconteceu com o consumo de alimentos em 95 e 94. Os ovos tiveram um aumento de 16,4%; os frangos, que todo mundo pensa que é o único -não é- é 16,6%; conservas, 40,7%; congelados, 92,8%; iogurte, 89,4%. De um ano para o outro. É a moeda estável, que teve o efeito imediato de garantir a continuidade do valor do dinheiro e permitir essa expansão seguida, de um aumento de renda, que eu vou mostrar daqui a pouquinho.
Pode ver a outra tabela. Diz respeito, aqui, ao aumento do consumo dos bens duráveis. Geladeiras, aumentou 30,5%; TV em cores, 51,5%; e liquidificadores, 12,7%. Veja, comida, depois se passa aos bens normais de uma casa: geladeira, TV, liquidificadores.
Quer dizer, quando se dá um acesso dessa proporção, não é a classe média alta que está comprando. Não é nem mesmo a classe média, é o povo, que começa a ter acesso a esses bens. Isso diz respeito ao modo de vida, ao bem-estar social. É claro que quem está no bolsão da miséria não comprou. Eu vou chegar lá.
Mas isso significa que houve uma transformação importante, e que tem que ser garantida, porque ela não é garantida, permanentemente, se nós não tivermos uma ação muito enérgica, em olhar os gastos públicos, em olhar as finanças públicas, em olhar as taxas de juros, etc e etc.
Quando se olha o cimento, em milhões de toneladas, é muito interessante. Porque, aqui tem um gráfico que vai -mesmo de óculos eu enxergo pouco- desde 1990, 91, 92, 93, 94, 95. Em 95 tem um pulo. E não houve um aumento grande da construção de grandes obras. É que houve o aumento do "consumo formiguinha". É fazer reforma na favela, é fazer reforma na casa popular, e construir a casa da população mais pobres.
Cresceu, fortissimamente -nós temos aqui um aumento de 28% no consumo do cimento, num momento em que a construção civil não teve esse mesmo crescimento. É consumo de massa. Houve, até mesmo, como se sabe, modificação na embalagem do cimento para fazer saco de um quilo, para a população poder utilizá-lo.
Mais adiante vão ver, também, que houve um imenso aumento de venda de automóveis. Mas aí são só os automóveis chamados populares. E eles aumentaram em milhares. 93, 94, 95, vê-se aí, a curva desses automóveis nos setores mais populares.
E a capacidade de compra da população prossegue dois anos depois do real. É isso que explica esse crescimento, por exemplo, de televisão, da ordem de 50%.
Que que eu quero dizer com isso? Quero dizer com isso o seguinte: é dar um exemplo do que eu disse há pouco. Isso não abrange o conjunto da área social, mas isso mostra que a separação entre o econômico e o social feito de forma mecânica é antiquada. Na medida em que se programa uma estabilização -e não foi fácil programá-la desta forma- ela saiu dos cânones internacionais, ela não teve o apoio do Fundo Monetário Internacional -nunca ninguém diz isso- foi a única, talvez, bem-sucedida no mundo que não teve o apoio do FMI. Nós não fomos para uma linha de recessão. Fomos para uma linha de crescimento moderado, mas de crescimento. E fomos para uma linha de distribuição de renda.
Na medida em que se faz isso é que se consegue mostrar que se supera o dilema entre o econômico e o social. Ou se supera esse dilema ou a discussão é vã. Tão vã quanto se dizia da vã filosofia. Ficam alguns, tudo pelo econômico, outros tudo pelo social. Não. É junto. O resto é metafísica, como se diria antigamente. Hoje eu não sei.

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