São Paulo, terça-feira, 7 de maio de 1996
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Massacre mostra que não haverá reforma agrária

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O massacre é sempre culpa do "Outro". Ninguém quer partilhar o massacre. O massacre é um latifúndio improdutivo que ninguém quer dividir. O massacre dá a sensação de que algo aconteceu, quando não aconteceu nada. Houve apenas uma coisa que sempre esteve ali, acontecendo sem parar, uma máquina suja que sempre funcionou em silêncio.
O massacre tem a função dos sacrifícios rituais antigos: serve para nos purificar. Todo mundo se indigna, todo mundo lamenta, todo mundo fica mais "bom". A CNBB fica mais santa; a oposição corre com os rostos compungidos e segura os caixões como se fossem os proprietários privados da dor.
O massacre tem a vantagem de mostrar a inutilidade de nosso horror. Nosso horror "não" está no massacre. Lá não é o mundo das idéias. Lá é o mundo. O massacre é uma eucaristia. Todos comemos aqueles corpos como um sarapatel. Eles nos limpam e aliviam. Graças a Deus, não estamos lá. Graças a Deus, podemos nos "indignar".
O massacre é iluminista, é uma aula de vida -para os "voyeurs", como nós. Os massacrados/massacradores são mais profundos que nós, porque nós só falamos, e eles estão no centro da escrotidão do sangue e da merda.
Os massacradores cumprem as ordens invisíveis que vêm de todos os lados: dos fazendeiros, dos políticos, dos juízes, da polícia, da lógica secular da Colônia e, depois, ficam de boca aberta diante de nosso escândalo: "Como? Mas vocês não pediram?"
Para eles não houve massacre; apenas um dia agitado do inferno onde moram. Os massacradores são nossos enviados especiais.
Os massacradores (desde Carandiru, Candelária, Vigário Geral) são nossa "vanguarda". Além de serem uma síntese do que é o Brasil, eles inauguram a nova Política de Extermínio, que é o "l'air du temps" da nova direita mundial. Vejam a decisão sublime do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o Carandiru: "A culpa foi das vítimas!" Foram 111 culpados.
Só que os massacradores são muitos óbvios para o nosso gosto... Interpretam com boçal realismo nossa violência difusa. ("São muito literais estes PMs, levam tudo ao pé da letra... cruzes...")
Os massacradores são os massacrados de uniforme. Os massacradores podem dizer: "A gente matava neles a nossa vida miserável que nos fazia estar ali matando eles". O bem e o mal se juntam numa massa sangrenta. O país se choca. Mas ninguém sabe a verdade. A verdade é uma terceira coisa sem nome onde ninguém escolhe nada: nem morto, nem matador.
Nossa "finesse" reage com uma certa raiva dos sem-terra: "Por que não param de encher o saco?" Preferíamos os pobres simbólicos, longe. Era uma miséria boa, controlável.
Os intelectuais de esquerda sempre gostaram de uma miséria "figée", "en galantine", uma miséria em compota. A miséria tinha uma função social: aplacar nossa consciência. "Agora, não; deram para invadir tudo... A miséria está querendo papel principal. Antes era figurante. Estes miseráveis andam muito exibidinhos... Querem entrar na Globo. Logo agora, que tinha saído de moda no mundo todo, a miséria quer aparecer no Brasil... Somos atrasados, mesmo", pensamos.
O massacre dos sem-terra foi útil, porque aprendemos mais sobre o nosso querido Brasil. Em vez das ocultações da ditadura, aprendemos muito sobre nosso destino escroto, até que chegue outra ditadura, que virá para fazer grossamente as reformas que a democracia não quer fazer.
Aprendemos no teatrinho de cordel sujo, como um grande intestino emaranhado, onde aparecem as testas curtas dos assassinos, o sarapatel dos corpos ensanguentados, a cara de boçal dos oficiais, o riso dos capangas descerebrados, o escrivão batendo na máquina de escrever Underwood no meio do capinzal, o advogado de Macaxeira com bela barba cínica fazendo "blagues", certo da transa funda entre juízes e fazendeiros, a cara de bobo do Almir Gabriel, a berlinda maldita de FHC.
O massacre nos ilustrou sobre a impotência do poder. Tudo tão chocho, tão simples. Como os massacres são simples!... Tudo tão diferente do escândalo épico dos jornais!... Aprendemos como a morte é simples. A crueldade é tão fácil de aprender...
Aprendemos com o massacre sobre o oportunismo dos bons. Até os estrangeiros faturam os cadáveres. Os exportadores ingleses de mogno, os seculares exploradores da nossa miséria, os frios americanos, os franceses colaboracionistas e racistas, todos se indignam pelo mundo afora. E, mais perigoso ainda, as velhinhas de Kentucky ameaçam tirar seu "smart money" aplicado aqui.
O massacre tira o sono do Citibank, "that never sleeps".
O massacre nos mostra a cara de "justos revolucionários" dos líderes dos sem-terra. Os delírios maoístas guiam as foices dos desvalidos. Seus líderes se acham "heróis" contra o que chamam de "neoliberalismo". O líder Stedile parece um Cristo-Gramsci dos matagais.
O massacre aumentou o patrulhamento sobre qualquer discussão que questione a reforma agrária clássica dos sem-terra. Falar em agroindústria e produção de comida virou papo de "neoliberal de direita".
Depois do massacre só interessa ao emocional oportunismo e aos emocionais ignorantes as soluções "zapatistas". O massacre fez o governo aceitar um erro político para não cometer um erro político!!! Que loucura!
O massacre nos mostra ainda como o humanismo é pouco. O massacre mostra que os fatos correm mais rápidos que as interpretações, e que nossa piedade não explica nada. O massacre nos pôs numa sinuca moral feita de sangue e fezes, de modernidade e lixo. O que aconteceu são apenas alguns espasmos do insolúvel.
Uma solução moderna para o campo não emociona, nem somos suficientemente práticos para realizá-la. Essa é verdade. O Nordeste poderia ser um celeiro da Terra, alimentando o Brasil e exportando comida para o mundo. Não será. A indústria da seca não deixa, aliada à "indústria da revolução".
O importante no Brasil não é o resultado: é a aparência. Vai vencer o delírio zapatista que nos levará a nada, apenas talvez ao sonho ridículo de uma "civilização guarani", com camponeses comendo paçoca na porta da palhoça.
Não há no Brasil limpidez mental e organização de poder que possam fazer uma reforma agrária real. A reflexão política restrita ao ponto de vista do oprimido está fadada a ser oprimida pelas idéias dos não-oprimidos.
Talvez consigam uma reforma medíocre e híbrida, quatro acres e uma mula, com desvalidos urbanos tirando do chão só a subsistência.
Os milhares de empecilhos levarão a um impasse eterno. Os fatos que surgiram no massacre provam que essa reforma agrária não vai acontecer. Querem apostar?

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