São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 1996
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A conquista da abundância

JESUS DE PAULA ASSIS

"Afinal, uma filosofia não é como uma peça musical, que pode ser apreciada em si mesma. Pretende-se que ela nos guie através da confusão e, talvez, nos forneça um projeto para mudança." Paul Feyerabend

do racionalismo crítico de Popper ao "vale-tudo" de "Contra o Método" -seu mais importante livro, publicado em 1975-, Paul Feyerabend percorreu todas as vias que a teoria do conhecimento ofereceu no século 20. E o resultado é uma serena manifestação de humildade: a filosofia deve ser um guia para a vida prática, nada mais. Mas isso é dito com menos grandiloquência que a encontrada em Wittgenstein. As palavras são bem-humoradas, a linguagem é solta, as metáforas abundam. Assim, é claro que Feyerabend teve -e ainda tem- certa dificuldade para ser assimilado à filosofia "séria". "Sua irresponsável queda pelo 'succès de scandale' tem acendido a ira de alguns setores", foi um dos pareceres quando de sua candidatura a professor na Escola Politécnica de Zurique. Apesar disso, diga-se, prevaleceu a inteligência e ele foi admitido.
O mais interessante de "Killing Time" é notar o quanto a vida do autor se confunde com seus textos: caos, mudanças abruptas de direção, incerteza, ao lado de erudição e de senso de humor. Feyerabend teve uma trajetória de vida tortuosa, levada, de início, pelo cataclismo da Segunda Guerra Mundial. Austríaco, e com a Áustria anexada à Alemanha, ele foi alistado no exército nazista e colocado na frente de batalha em janeiro de 1945. Foi ferido no rosto, na mão (o que ele lamentou mesmo, no momento, foi que a bala furou a bela luva de couro fornecida pelo exército alemão) e nas costas. Esse último ferimento lhe custou o uso de muletas pelo resto da vida, a impotência sexual e uma rotina de constante dor. Apesar disso, o livro não torna essa tragédia centro das atenções. No posfácio, escrito por sua terceira mulher, Grazia Borrini, está dito que duas coisas ficaram fora do texto: a prodigiosa quantidade e variedade de leituras que Feyerabend realizava e a excruciante dor física que sempre o acompanhou.
Terminada a guerra e recuperados os movimentos básicos que lhe permitiam mal-e-mal andar, Feyerabend se dividiu entre música (estudou canto lírico e esteve várias vezes para se profissionalizar), teatro (quase foi assistente de Bertolt Brecht), física e filosofia. De fato, ele nunca se decidiu inteiramente por nenhuma. Qualquer atividade em período integral lhe parecia alheia, um desperdício de vida. (E tanto maior o desperdício se essa atividade fosse a filosofia.)
Sua porta de entrada para a epistemologia foi Karl Popper. De início, diz Feyerabend, o racionalismo crítico daquele lhe parecia absolutamente plausível e ele o incorporou em suas aulas e seminários. Mas sempre lhe pareceu que havia um verme por dentro daquela estrutura ,"a worm in the woodwork" (pág. 88). De fato, a idéia que o incomodava era a suposição de que o racionalismo crítico indiscriminadamente aplicado à atividade científica resultaria em uma ciência tão boa ou melhor do que a realmente feita pelos cientistas. Quase 20 anos se passaram para que esse verme que corroía o racionalismo crítico viesse à luz em "Contra o Método", cuja principal tese é justamente: um método científico, de fato, não existe.
Mas, como provar que não existe método? Provar seria o equivalente a supor a validade de uma superteoria que fundasse a tal prova. Mas, se não existe, para o autor, uma teoria científica cujo fundamento possa ser inteiramente defendido, o que dizer, então, de uma teoria sobre a ciência? E de uma teoria sobre as teorias da ciência? Não, a estratégia precisava ser outra. E Feyerabend escolheu argumentar internamente, ou seja, resolveu jogar no campo do racionalismo e, dele, extrair preciosas contradições.
Sua argumentação partiu de fatos bem estabelecidos na história da física. Qualquer racionalista aceita Galileu como cientista emblemático. Todo cientista que merece o nome -ainda com o racionalismo crítico- deve respeitar a experiência, substituir teorias em vista de experimentos malsucedidos, repudiar hipóteses "ad hoc" (hipóteses construídas especialmente para explicar experimentos que negaram previsões de uma dada teoria), evitar circularidade e regressão, por exemplo, não usando teorias "sub judice" para escorar outras teorias "sub judice", e assim por diante. Pois bem, basta analisar a obra de Galileu com algum rigor e atenção para descobrir que ele cometeu todos os pecados listados no catecismo racionalista. Então, ou o racionalismo (crítico ou o que seja) está em grandes apuros e deve ser abandonado ou Galileu não é, no fim de contas, um cientista. Feyerabend, é claro, não pretende jogar pela janela a fundamental obra do físico italiano. Só resta, então, uma saída...
Mesmo tendo sido publicada 13 anos depois de "A Estrutura das Revoluções Científicas", de Thomas Kuhn, a obra "Contra o Método" causou impacto negativo considerável no meio acadêmico. (A editora Francisco Alves publicou no Brasil uma das primeiras traduções, em 1977.) De fato, o livro foi sugerido a Feyerabend por um outro filósofo da ciência, Imre Lakatos. Segundo Feyerabend, Lakatos lhe dissera para escrever o livro, o qual o próprio Lakatos criticaria e, no fim de contas, "nós iríamos nos divertir muito". Mas Lakatos morreu um anos antes da publicação, o livro foi amplamente divulgado, em muitos casos em más traduções, e Feyerabend ficou sozinho para responder à avalanche crítica. As respostas nem sempre faziam muito sentido pois, intelectual dispersivo que era, e que encarava seu texto com humor, como algo que se lê para tirar boas intuições, para ter novas idéias, para "divertir-se", Feyerabend não relia o livro para responder às invectivas. Assim, em suas palavras, "diziam que Feyerabend disse X e eu assumia que tinha realmente dito X e punha-me a defender X quando, em muitos casos, eu não tinha dito X, mas seu exato oposto".
Esse caos intelectual, que não é resultado da preguiça, mas, pelo contrário, da percepção profunda das correntes que perpassam a filosofia e, mais amplamente, a cultura do século 20, é a marca registrada do autor, seja em "Contra o Método", seja em sua atividade docente, seja em suas convicções políticas, seja em sua um tanto caótica autobiografia. Para além do conteúdo, a própria forma desta resulta da rica forma de pensar de seu autor, que, em outro momento, se definira como dadaísta.
O título do último capítulo é "Fading Away" (Desaparecendo). Quando criança, em Viena, Feyerabend observava a sofreguidão com que as pessoas corriam pelas ruas, pastas na mão, em busca de trabalho, de oportunidade, de dinheiro. Ao mesmo tempo, notava que um grupo se sentava calmamente nos bancos de uma praça. "Quem são eles, pai?", e seu pai lhe respondeu: "São aposentados". Estava escolhida, desde criança, a carreira de Feyerabend: queria ser aposentado. Aos quase 70 anos, ele se preparava para desaparecer, ou seja, dedicar-se à leitura, a poucas palestras, à mulher e, eventualmente, à paternidade. Mas o destino mudou o sentido de "Fading Away". Um tumor maligno foi detectado em seu cérebro e ele passou as últimas semanas de vida em um hospital. "Estes podem ser os últimos dias. Tomamo-los um por vez". Sem conseguir aposentar-se, Paul Feyerabend morreu 15 dias depois de escrever essas frases, a 11 de fevereiro de 1994.

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