São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Porto Alegre tem crepúsculo e mais

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Depois de velha dei para viajar Brasil afora. Não é sopa! Fui parar em Porto Alegre, nossos pagos. Não sem antes tomar um lanche no avião. E o quê? Sucos e café. Goiabada com queijo. Barquete úmida recheada com pasta indefinida. Dois bolinhos de peixe, como dedos, fritos e frios. Dois quibes e duas esfihas aquecidas no microondas. Mas onde estamos?
Que criatividade sem rédeas é esta? O que há de errado com uma boa pêra madura e um pedaço de queijo? Já sei! A pêra não cabe em pé nas bandejas que precisam ser empilhadas. Mas e o velho e bom sanduíche frio de presunto e queijo? E todo mundo feliz e satisfeito com seu lanche sem surpresas nem mistérios? Isto é uma pequena campanha disfarçada contra maus tratos em avião.
Sobre Porto Alegre e seus crepúsculos de outono, não sou boba de escrever. Já caíram na boca do mundo.
Mário Quintana levou o escritor carioca Marques Rabelo para assistir o pôr-do-sol no Guaíba. De volta ao Rio, escreveu: "Como eles não têm nada para mostrar, ficam falando dos tais crepúsculos". Brincadeira dele. Há tudo o que ver e muito para sentir.
Acontece que três dias numa cidade e é ela que te conhece, assalta os sentidos, transmite impressões, remexe memórias. Porto Alegre é São Paulo e Ipanema nos anos 50, Santos nos anos 60, uns recantos de Londres. Tem muito de cidade praiana sem ser praia, é cidade grande sem ser. Mexe com palavras arquivadas e datadas desde as composições do primário.
Placidez, alumbramento, delicadeza, fidalguia, formosura, adorno, bulício, a mão do vento, lirismo, enlevo, cinamomos, estações díspares, enclaves. E olhe que todo esse deslumbramento aconteceu apesar de estarmos trabalhando, desguaritadas, sem bons endereços, caímos em picanhas requentadas, farofas descuidadas, morcillas esfarelentas.
Em compensação, num boteco que parece sustentar o mercado tumultuado pela reforma e restauro, comemos bolos de batata e carne de bom tamanho, trincando por fora e cremosos por dentro. O chope não podia ser melhor.
Uma instituição sem perigo de erros é o sanduíche aberto para acompanhá-lo. Eu o imaginava grande e nada mais é que o canapé velho de guerra, empilhando-se em lombinhos, picles, ovos, mostarda que sobe ao nariz.
Trouxe, na mala, pasta de pêssego, goiabada e figada de Pelotas. No Brique da Redenção, feira de artesanato e antiguidades não muito velhas, à beira de enorme parque, as mulheres abrem as térmicas e enchem as cuias de mate da família. Todos tomam em silêncio, agradados, o reconfortante chá das cinco. Achei Porto Alegre uma das nossas cidades mais bonitas, limpas, cultas e civilizadas. É preciso voltar.

Texto Anterior: Turquia; Japão; Argentina
Próximo Texto: Salão faz quatro dias de panorama
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.