São Paulo, sábado, 11 de maio de 1996
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Papoulas dão também alegria e obras-primas

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Timothy Leary, apóstolo das drogas, filósofo psicodélico de meados do século, entrou em processo de agonia espetacular. Está para morrer de câncer da próstata, mas faz questão de morrer recebendo amigos e ex-discípulos, aspirando gás hilariante, tomando peiote e LSD. Se Leary já estiver morto quando vocês me lerem, podem ter certeza de que não foi por açodamento dele.
Sente grande alegria, e a nutre com drogas, o tempo todo. Como o nosso Darcy Ribeiro, com a diferença fundamental de que Darcy nem precisa de drogas para nutrir o seu gozo de estar vivo.
Tim Leary, quando emerge dos porres e quando nada lhe dói muito, inventa festas, convida amigos e toma uma boa dose de uísque enquanto fuma um cigarro.
Leary -ao contrário do meu amigo Darcy, que pelo menos jamais mencionou tal possibilidade- tem projetos "criogênicos" de ser congelado depois de morto para ressuscitar um dia. É a única idéia dele que positivamente me repugna.
Eu também tenho câncer de próstata, embora não ache tanta graça assim na situação quanto Leary ou Darcy. Quanto à idéia de ressurreição, nem morto, como se diz agora. Não é que eu não goste tanto da vida quanto Darcy, ou Leary, mas basta uma, e, de preferência, que vá até antes do câncer de próstata se manifestar. Exageros, não.
Vejo, numa reportagem sobre a morte anunciada de Timothy Leary, que ele é visitado com frequência pela viúva de Aldous Huxley. Huxley nos deu o belo e tranquilo exemplo de morrer sem maior sofrimento físico, graças à auto-administração que fazia do ácido lisérgico.
Aliás, ele pode e deve ser colocado na honrosa categoria dos homens realmente representativos do nosso século. Não foi, na arte, do nível de Proust ou Joyce, nem chegou, em filosofia, perto de Heidegger ou mesmo de Sartre.
Mas nos seus ensaios, em dois ou três romances, e, sobretudo, nos estudos que escreveu sobre as drogas e a religião, marcou o século. Não foi um apaixonado pela vida-vida, como Leary e Darcy. Queria a vida eterna, tal como descrita pelos monges tibetanos. Tomara que tenha chegado lá.
Eu já escrevi (e aqui me penitencio) que Huxley fez a pior escolha que um homem famoso podia fazer da hora da própria morte. Morreu, em sua casa da Califórnia, no mesmo dia em que Kennedy era assassinado em Dallas, Texas. Vejo, hoje, que Huxley se cercou do silêncio que queria. A morte de Kennedy matou a dele, que pôde se apagar em paz, em sua cela de monge tibetano.
Não foi por culpa de Huxley, e sim de porra-loucas como Leary, que as drogas viraram uma praga, uma espécie de "mal do século". Elas são a maior bênção que a humanidade já recebeu. Pensem no que eram, antes delas, as mil dores que nos afligem e pensem na banca de açougue que era uma mesa de cirurgia.
Os gênios do nosso tempo viram logo o que estava acontecendo quando antigos entorpecentes começaram a ser modelados e distribuídos por laboratórios. Foi um cirurgião vienense chamado Koller quem pela primeira vez usou cocaína numa operação de olho. Sabem quem lhe aconselhou a experiência? Freud. Freud mandava cocaína até para sua noiva Martha, como quem manda bombons.
Historicamente falando, as drogas e as artes sempre se entenderam muito bem. Quando o ópio e seus derivados começaram a circular pela Europa e Estados Unidos, criaram estranhos livros como as "Confissões de um Comedor de Ópio", de Thomas de Quincey, "Os Paraísos Artificiais", de Baudelaire, ou poemas de uma beleza quase inexplicável, vinda de algum outro mundo, como o "Kubla Khan", de Coleridge. O poema é tão poderoso que, na minha opinião, é em grande parte responsável pela catastrófica beleza que anima o melhor filme da história, "Cidadão Kane", de Orson Welles.
No seu famoso e polêmico livro "The Citizen Kane Book", a crítica Pauline Kael opina que o texto do filme é muito mais de Henry L. Mankiewicz do que de Welles. Em seguida, publica o texto e as imagens do filme. Como todo o mundo sabe, Coleridge, devorador de livros de viagens, criou para Kubla Khan, o grande conquistador mongol da China, um palácio que até hoje nos eletriza. Chama-se Xanadu, o palácio.
Quando Hearst, o mais poderoso jornalista que já houve, construiu, com torres e pátios e fontes que pilhou da Europa inteira, seu palácio residencial nos Estados Unidos, deu-lhe o nome insosso de San Simeon. No filme de Welles chama-se Xanadu.
O filme, aliás, abre-se com a vista de Xanadu, isto é, o fantástico palácio de Hearst. E os tantos e tantos que até hoje elegem "Cidadão Kane" como o maior dos filmes hão de lembrar que, à medida que envelhece e fica afinal inteiramente calvo, Kane parece cada vez mais um mongol. Xanadu acaba por abrigar o Khan de novo, agora como Kane, num palácio, tal como o outro, construído sobretudo de ópio.
O comedor de ópio De Quincey (1785-1859) era contemporâneo de Coleridge (1772-1834), e sem dúvida apreciaram ambos aquela destilação de papoulas que, além de minorar as dores do corpo, abriam novos caminhos ao espírito. E por mais que Pauline Kael se esforçasse, não me convenceria de que não veio do próprio Orson Welles a lembrança do nome de Xanadu. "Cidadão Kane" é um filme encharcado de Coleridge.
Coleridge escreveu para seu poema um verdadeiro prefácio. Conta que nem pretendia publicá-lo, pois não passava de um fragmento. Só o publicava devido à insistência de um amigo, de "merecida celebridade", Lord Byron. A historinha de Coleridge é que, devido a "uma leve indisposição", tomou "um calmante", ópio. Ferrou no sono por umas três horas e, ao acordar, pegou a pena, molhou no tinteiro e... escreveu "Kubla Khan".
Ou estava escrevendo, quando lhe bateu à porta alguém que precisava receber e que o segurou por mais de uma hora. E quando Coleridge tentou retomar o poema, não tinha a menor idéia de como prosseguir. Se me permitem: o porre tinha passado.
O poema foi, cerca de século e meio depois, reatado e terminado por Orson Welles, em "Cidadão Kane".

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