São Paulo, quinta-feira, 16 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A Irlanda de Joyce e do U2 é o paraíso terrestre

DAVID DREW ZINGG
EM DUBLIN

Existe uma saída da confusão que está pouco a pouco acabando com o mundo tal qual você, Joãozinho, o conhece. Existe, sim, um lugar onde você pode sentir o gostinho da vida, da maneira que ela poderia e deveria ser vivida neste planeta.
Existe uma terra onde a vida pode ser tão simples, e ao mesmo tempo tão mansa, tão inteligente e tão cheia de humor, que faz você pensar que topou por acaso com um Brasil que cresceu, amadureceu e, surpreendentemente, acabou realmente virando o paraíso terrestre que todos nós sabemos que poderia ser.
Acabo de descobrir esse inesperado paraíso terrestre. Estou voltando de uma viagem para lá.
Essa terra tem um nome. E seu nome é Irlanda. É a terra de James Joyce e do U2.
V.S. Pritchett acertou em cheio quando disse, referindo-se a essa minúscula ilha varrida pelos ventos, que, quando você chega a Dublin, "... chegou ao início do fim da criação". Acompanhado por um erudito e divertido amigo e guia irlandês, fiz uma tour relâmpago de carro por essa nação minúscula, tão fortemente modelada pela história, pelo sofrimento e pelo clima.
A nova Irlanda é um segredo zelosamente guardado. Trata-se de uma nação que aceitou a União Européia sem reservas. O resultado é visível nas novas rodovias, nas escolas e na prosperidade.
A população da Irlanda, espalhada por uma área mais ou menos do tamanho da Grã-Bretanha, é minúscula -apenas 3 milhões de habitantes, o equivalente a umas duas Curitibas. Um visitante vindo das metrópoles superpovoadas do Brasil fica com a sensação de que ainda existem alguns poucos lugares neste mundo onde, talvez, ainda haverá ar suficiente para se respirar amanhã.
Como o Brasil, a Irlanda tem uma população jovem -cerca de 45% de seus habitantes têm menos de 25 anos.
E, se você, Joãozinho, anda tendo dificuldade em encontrar companhia feminina atraente, saiba que este é o lugar certo para você. As "colleens" -é como chamam as Jennifers por aqui- superam substancialmente os homens, em número.
Se você é homem e está na Irlanda, está feito, por assim dizer... estatisticamente.
A Irlanda tem uma história longa e trágica que fez dela uma nação de poetas, bardos e músicos. Também lhe deixou um legado de boas maneiras.
Até os anos 60 este país feroz, salpicado de sangue e ao mesmo tempo gentil, vivia isolado num tempo e espaço onde a cortesia e os modos gentis ainda eram a norma. E, de modo geral, ainda o são.
Aqui na Irlanda tive a estranha sensação de estar viajando pelo velho Brasil cordial, um Brasil educado que, como num sonho, havia trocado de língua mãe -o português-, dando lugar ao inglês.
Mais do que qualquer outro país como a Sambalândia, a Irlanda é o país do falar macio. Com inteligência, humor e sacação rápida, você consegue tudo que quiser neste país. O "jeitinho" sobrevive na Irlanda, vestido de verde-trevo, a cor nacional da Irlanda.
A solução irlandesa para dilemas impossíveis é a mesma: um papinho que tudo resolve. Confrontado com um obstáculo aparentemente intransponível, meu amigo se vira para mim e sorri: "Espere um minutinho, enquanto eu travo uma pequena negociação com este cavalheiro".
Bem-vindo à Irlanda, que bem poderia ser uma extensão do Brasil.
Água da Vida
Os pubs são um modo de vida na Irlanda inteira. Você entra em qualquer um deles e se vê cercado por lunáticos inspirados, enlevados com o brilho de sua própria inteligência. Veja, por exemplo, esta cena que testemunhei no pub mais antigo de Dublin, do qual Leopold Bloom dizia: "Você é tratado com decência no The Brazen Head".
"Sinto uma tentação terrível de tomar mais uma Guiness", diz Denny a Harry.
"Bem, só existe uma maneira de livrar-se da tentação", responde Harry.
"Qual é?", pergunta Denny.
"Render-se a ela, claro", diz Harry. "Garçom, mais duas Guiness".
"De qualquer maneira", prossegue Harry, atacando a nova cerveja como se sua vida dependesse disso. "A tentação é uma coisa horrivelmente persistente. Se você não se livrar dela, não vai conseguir evitá-la."
Harry tem sua filosofia própria referente à tentação, embora provavelmente não use palavras tão chiques quanto "filosofia".
"É melhor aproveitar a tentação ao máximo enquanto não consegue evitá-la", diz ele. "Porque, quando ficar mais velho, é ela quem vai evitar você."
"Escuta aqui", diz Denny, "você não tem consciência?"
"O negócio é o seguinte", fala Harry. Segurando sua cerveja gelada numa mão enorme, prossegue: "De vez em quando o Senhor fala comigo sobre meus erros; às vezes eu falo de volta, e metade das vezes ele me deixa fazer o que quero. Portanto, pode encher os copos de novo, garçom, e traz uma para o tocador de sanfona".
"Eu não sabia que dava pra beber e tocar sanfona ao mesmo tempo", diz Denny.
"Beber?", indaga Harry. "Tá brincando? Ele bebe que nem um jacaré. Foi só quando voltou pra casa sóbrio uma noite, e a mulher percebeu que ele não estava normal, que ela se deu conta de que ele bebia. Então você tá vendo -ele se encrencou justo na noite em que não se rendeu à tentação."

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Jorge Amado fica em hospital de Paris até o final da semana
Próximo Texto: The Boom traz seu batuque com sotaque
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.