São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Relato de uma paixão

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DO MAIS!

A barulhenta polêmica gerada pela publicação, no fim do ano passado nos EUA e na Europa, de "Hannah Arendt/Martin Heidegger", da historiadora americana Elzbieta Ettinger, tem como exato contraponto a decepção produzida pela leitura da obra lançada este mês pela Jorge Zahar Editor.
A expectativa tinha lá suas razões. Afinal, a autora foi a primeira pesquisadora a ter acesso à correspondência entre Arendt e Heidegger, guardada sob sete chaves na Biblioteca do Congresso, em Washington, e nos Arquivos Literários Alemães, em Marbach.
Os herdeiros permitiram a Ettinger apenas um acesso restrito aos documentos pessoais de Heidegger e impediram qualquer citação textual dos papéis. Pior para eles, pois a reputação do filósofo acabou mais denegrida pela mistura de glosa e obsessivos comentários moralizantes de Ettinger.
Nada, senão o oportunismo, é capaz de explicar as razões da magreza do texto. Não se deve creditar à censura, mas à pressa e ao desmazelo biográfico, as exíguas 134 páginas da obra.
Afinal, esta não foi, de fato, apenas uma história de amor. Além de um romance, a relação entre Arendt e Heidegger se estendeu por 52 anos e reuniu dois dos pensadores capitais do século. Não fosse o suficiente, ele é acusado de anti-semitismo, antes mesmo de aderir ao nazismo, e ela era judia.
Mas para Ettinger a moral precede os fatos. Heidegger é descrito desde o início como um monstro nazista. E Arendt como uma judia masoquista que clama por submissão a seu mestre e senhor, identificando-se aos personagens do filme "O Porteiro da Noite".
Para azedar o romance, ela põe em cena Elfride, mulher de Heidegger e nazista de primeira hora, segundo Ettinger. Em uma carta escrita ao marido Heinrich Blücher, em 1950, Hannah declara: "Temo que a mulher dele esteja a fim de afogar todos os judeus enquanto eu continuar viva".
No fim da vida, quando Heidegger enfrentou problemas financeiros e procurou Arendt para se informar sobre valores de manuscritos, o tipo de juízo de Ettinger converte-se em mero preconceito. "A quem deviam os Heidegger recorrer quando o problema era dinheiro?", pergunta a autora. "A um judeu, a alguém que já trouxesse no sangue a habilidade para lidar com tudo que dissesse respeito a finanças."
Diante desse tipo de argumento anedótico que prolifera no livro, resta perguntar: eles servem a algum propósito de esclarecimento?
Infelizmente, não. Pois em momento algum se convertem em subsídio para compreensão do que ainda resta a esclarecer: as ressonâncias das vidas e das obras de Arendt e Heidegger.

Texto Anterior: Ruínas da ética e do pensamento
Próximo Texto: Mensagens numa garrafa para um mundo em liquidação
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.