São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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Ruínas da ética e do pensamento

THELMA LESSA DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A polêmica discussão sobre os comprometimentos de Heidegger com o nazismo ganha, com o texto recentemente traduzido de Jean-Pierre Faye -"A Razão Narrativa - A Filosofia Heideggeriana e o Nacional-Socialismo" (Ed. 34)- não apenas uma nova leitura do problema, mas sobretudo uma diretriz original sobre os termos em que a questão deve e pode ser discutida.
Não se trata de decretar um simples juízo condenatório à adesão entusiástica do reitor da Universidade de Freiburg ao nacional-socialismo para, num segundo momento, recusar a obra do filósofo enquanto resíduo de sua biografia. A análise de Faye busca antes entender as mudanças na direção do trajeto teórico do filósofo como inseparáveis de suas opções políticas.
Em um estrato mais profundo, o que Faye questiona é a idéia da dissociação entre vida e obra, de independência das idéias em relação à ação situada em um momento histórico determinado. Neste sentido, o problema do livro não se restringe ao próprio Heidegger e nem à questão de sua responsabilidade pessoal, ainda que esse seja o tema central.
O "caso Heidegger" é, em "A Razão Narrativa", exemplar. Elegê-lo se justifica pelo fato de que ele nos permite compreender que a filosofia não pode tratar um tema impunemente, ou seja, que o discurso filosófico inevitavelmente se revela ao constituir-se como narrativa.
Há, portanto, um ensinamento a ser extraído do problema das relações de Heidegger com o nazismo, e isso é o que autoriza a atenção concedida ao filósofo que, para Faye, permanece um defensor do Estado totalitário de Ernest Jünger ainda no pós-guerra.
Coerente com sua crítica à história da filosofia, o texto sabe eximir-se da possível acusação de ter eleito Heidegger como tema e de ter privilegiado fatos biográficos, o que poderia ser lido como julgamento da obra pela vida e, evidentemente, reiteraria a cisão que o próprio autor busca denunciar como ilusória.
Prevenindo-se contra um possível opositor, Faye busca justificar seu empenho: "Objetar-se-á sem dúvida: das duas coisas uma, ou bem o que acontece na periferia da sinegrafia, lá onde se desfraldam estandartes e camisas marrons, não tem relação alguma com a própria filosofia do filósofo ali incluído, e então é inútil perder tempo com isso; ou bem ela é atingida por essa periferia e, neste caso, não merece um minuto de esforço. Mas esse dilema é ilusório" (pág. 134).
O dilema suscitado pela questão da pertinência da discussão sobre Heidegger e o nazismo se dissolve na idéia de que todo discurso sobre a história conta sua própria história, e isso serve para ler Heidegger tanto quanto serve para ler Faye. É aí que Faye legitima sua leitura de Heidegger e, ao mesmo tempo, expõe deliberadamente os pressupostos de sua própria interpretação do "episódio Heidegger" à crítica.
Sua estratégia metodológica consiste em partir do "silêncio de Heidegger sobre Auschwitz" (pág. 299), para explicá-lo sob a luz da idéia heideggeriana de ética como "a ruína, o perigo ou o perecimento do pensamento", expressa na "Carta Sobre o Humanismo" (de 1949).
Aqui, o tema da queda ("Hinfall", já presente em "Ser e Tempo") do ser em meio à busca do ente como norte da narrativa construída por Heidegger para descrever a história do pensamento torna o silêncio revelador: a ética aparece, então, como queda e por isso a retratação não tem lugar.
Nietzsche surge no livro de Faye como contraponto da leitura da história da filosofia sustentada pelo estruturalismo e, concomitantemente, dos herdeiros da filosofia heideggeriana. O perspectivismo nietzschiano não se pretende isento, não busca escamotear o lugar a partir do qual um pensamento é engendrado.
Para o autor, "perspectivismo" significa que toda ação vivida, na medida em que é contada, descreve sua própria perspectiva em relação a outras perspectivas e, ao fazê-lo, revela seu horizonte histórico.
Consciente do compromisso inerente a todo relato, o texto de Faye pode ser resumido na seguinte questão: "Devemos nos submeter ao imperativo de obediência mais ou menos estrita que os heideggerianos opõem a qualquer investida no campo político da filosofia?" (pág. 354)

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