São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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Uma discussão frágil

ZECA CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Andrew Sullivan escreveu um livro sobre a discussão do homossexualismo que (o texto da orelha da edição americana nos quer fazer acreditar) "irá mudar permanentemente a maneira sobre a qual nós pensamos sobre esse assunto". Se ele vai mesmo mudar o pensamento sobre o assunto, vai depender mais da vontade de leitores entusiastas do que do esforço quase emocionante, quase ingênuo e quase convincente do autor.
Usando raciocínios "mezzo" sofisticados, Sullivan chega a propostas talvez ironicamente simplistas. Para uma resolução da questão homossexual, ele aponta duas medidas básicas: a aceitação aberta de gays no Exército e o reconhecimento civil para casamentos homossexuais.
Satisfeito? Para Sullivan isso já está muito bom. E pode ser que esteja mesmo. Mas para chegar às mesmas conclusões é necessário um pouco mais de contexto.
Para analisar o impasse homossexual contemporâneo -que confronta sua aparente maior aceitação com um evidente maior preconceito-, Sullivan divide o modo como a sociedade lida com a questão em quatro pontos de vista políticos: o proibicionista, o liberacionista, o conservador e o liberal. Nenhum, claro, oferece boa perspectiva aos homossexuais.
Os proibicionistas pregam praticamente a não-existência do homossexualismo. Com um forte pé no universo cristão, eles encaram os gays como seres não-naturais -que devem então ser erradicados ou, na melhor das hipóteses, curados. Mas, como aponta Sullivan, "é impossível curar adultos que não admitem que estão doentes". Com isso, proclama o autor, o proibicionismo como política está falido.
Construindo um pensamento ainda mais elaborado, Sullivan parte então para atacar os liberacionistas -um grupo que também nega a existência do homossexualismo não porque ele não faça parte do mundo natural, mas simplesmente porque na sociedade vista por eles o termo não passa de uma convenção.
Atacando principalmente o raciocínio foucaultiano de que libertar os gays por meio da sua identificação é apenas mais uma forma de controle, Sullivan argumenta que "seres humanos, enquanto profundamente afetados pela sociedade na qual nasceram e foram criados, não podem ser reduzidos a uma simples construção social".
O ataque seguinte de Sullivan é contra os conservadores, que ele define como "uma variante dos liberais". Seus conservadores estão preocupados em distinguir entre a vida nas esferas pública e privada. Assim, no que concerne ao homossexualismo, ele deve ser respeitado no nível da privacidade de quem o pratica, mas deve ser combatido toda vez que sua propagação representar uma ameaça à estabilidade da família.
Para Sullivan, também não há esperanças entre os liberais. Com um discurso desgastado e um mar de contradições no que se refere a definições do que é a liberdade de cada um -para não falar nas obscuras delimitações do que deve ser responsabilidade de controle do Estado ou do indivíduo-, o discurso liberal também não serve aos homossexuais.
Diferente do benefício que os liberais possam trazer às questões que envolvem raça, argumenta Sullivan, ao tratar do homossexualismo eles não têm como escapar das armadilhas de seu próprio pensamento. O que fazer então?
Deixar os gays fazerem parte abertamente das Forças Armadas e permitir a legalização do casamento entre eles. Pronto. Mas é tão simples? Claro que não!
Mesmo atravessando a estrada um pouco tortuosa de argumentações de Sullivan, uma solução prática como essa não deixa de ser decepcionante. Ainda que se desconte -como já foi levantado- o ponto de vista americano de onde Sullivan elabora suas idéias, fica difícil acreditar que suas propostas possam ser aceitas em outro nível que não o da discussão teórica.
Capaz de mostrar com esperteza contradições em Foucault, Sullivan acaba caindo na própria armadilha de oferecer a solução final a um problema tão complexo. A pergunta que ele faz no epílogo -para que servem os homossexuais?-, que, aliás, parece permear toda a discussão, é a que mais incomoda. Jogada com a propriedade de uma grande indagação filosófica, ela parece que não quer ser respondida objetivamente. E precisa? O quanto uma resposta dessa não serviria para reforçar preconceitos?
Deixando pontos assim abertos, Sullivan consegue até justificar a afirmação da orelha do livro (sobre a mudança da maneira como se pensa sobre o homossexualismo). Mas, pela promessa do autor (mais o bafafá da imprensa americana sobre o livro), a expectativa foi só parcialmente cumprida. No final da obra, Sullivan dá a impressão de que o que ele quer é só aquela coisa simples que todo animal precisa: um pouco de carinho.

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