São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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Uma religião moderna

JOSÉ LUIZ SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Após o lançamento de "O Culto de Jung" em 1994, nos EUA, o filho do psicólogo suíço (1875-1961), Franz Jung, pressionou a Editora da Universidade de Princeton a retirar a obra das livrarias e a cancelar a edição de uma coletânea de escritos inéditos no país. A coletânea fora organizada e prefaciada por Richard Noll, 35, psicólogo e pesquisador do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e também autor do polêmico "O Culto de Jung", que chega esta semana às livrarias brasileiras.
A editora não chegou a recolher os livros, mas cancelou a publicação, com o comunicado de que fazia uma "cortesia" à família de Jung. Noll afirmou ao "New York Times" que tal reverência era um recuo ante a ameaça da família de tirar da editora a posse exclusiva dos direitos de edição das "Obras Completas" de Jung nos EUA.
A Noll foi ainda negado, em junho de 1995, o acesso aos artigos de J.J. Honegger (assistente de Jung que se suicidou em 1911, aos 25 anos) -guardados pela Biblioteca do Congresso, em Washington, sob a condição de não-exibição sem autorização da família de Jung e de C.A. Meier, analista suíço a quem Jung entregou os manuscritos de Honegger.
Em outubro de 1995, a biblioteca devolveu os documentos à família de Jung. "Para evitar polêmica", disse Noll à Folha, por telefone, de Boston.
Noll diz que os artigos podem provar a idéia principal de "O Culto de Jung": a acusação de que o psicólogo teria passado a falsificar informações a partir do momento em que supostamente percebeu a presença de erros primários na base de sua "teoria do inconsciente coletivo" -a peça chave da psicanálise junguiana. Entre trocar de teoria e falsificar seus dados, Jung teria escolhido a segunda opção.
Jung escreveu certa vez que o que o levou a conceber a existência de um inconsciente coletivo -ou de imagens arcaicas que determinam o pensamento, o sentimento e o comportamento do homem- foi o caso de um paciente de Honegger, o "homem do falo solar".
O paciente dizia ter visto um sol dotado de falo. Jung interpreta a visão como a reprodução do mito grego do deus Mithra. E argumenta: se o paciente nunca teve conhecimento deste mito, como poderia chegar a imaginá-lo, senão pela existência de um "inconsciente coletivo", repleto de imagens partilhadas pela humanidade?
Noll afirma no livro ter descoberto que, no final da década de 10, o mercado editorial dos países de língua germânica foi invadido por escritos populares sobre mitologia, nos quais se encontrariam várias referências ao deus Mithra. E conclui: o homem do falo solar leu tal literatura; assim, não há um inconsciente coletivo a se tirar do fato -só a informação de que o homem do falo solar era um leitor imaginativo.
A acusação mais grave, contudo, é a de que Jung alterou datas na versão do caso que está nas "Obras Completas", supostamente depois de perceber seu próprio engano. Noll diz que, de posse dos originais de Honegger, pode mostrar o que diz, pois eles não teriam sido modificados.
Noll descreve Jung no suposto momento em que começou a alterar os dados como um pensador inteiramente engajado na criação de uma religião moderna ao redor da própria pessoa, experiência que o modo de funcionamento das associações de junguianos -supostamente estruturados ao redor de um líder espiritual- demonstraria ter sido bem sucedida.
Com estes argumentos, Noll afirma ser Jung o "mais influente mentiroso do século 20", e a doutrina junguiana um "movimento moralmente corrupto e intelectualmente falido".
A disputa entre Noll e Franz colocou sob suspeita, na mídia impressa norte-americana e européia, a liberdade de publicação da Editora da Universidade de Princeton, e os limites dos direitos da Biblioteca do Congresso de não-exposição dos documentos.
Marvin Kranz, responsável pelos artigos de Honegger na biblioteca, declarou ao "New York Times" que a biblioteca vetou o acesso de Noll aos documentos para não "alienar" a família, que queria os papéis de volta. Kranz disse ainda que este é um procedimento comum da biblioteca e que é melhor manter documentos sob restrição do que deixá-los em mãos que podem eventualmente ter interesse em destruí-los.
Antes da polêmica se tornar pública, "O Culto de Jung" recebeu o prêmio de melhor livro de psicologia de 1994 pela Associação dos Editores Americanos.
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Folha - O que o senhor quer dizer com "culto", quando fala em "culto de Jung"?
Richard Noll - Um pequeno grupo de pessoas que partilham a mesma crença nos poderes especiais de um líder, Carl Jung, e na possibilidade de serem eles mesmos os salvadores do mundo e da humanidade. O grupo de Jung acredita que, ao trabalhar seus sonhos e fantasias e contatar espíritos e deuses, trabalha para a salvação do resto da humanidade. Eles pensam ser os escolhidos.
Folha - Em um artigo, o senhor relaciona o "culto de Jung" à seita da Ordem do Templo do Sol, cujos participantes cometeram suicídio coletivo em 1994, na Suíça. O que Jung tem a ver com a seita fundada por Luc Jouret?
Noll - Penso que a dinâmica psicológica era a mesma. O grupo na Suíça acreditava nos poderes especiais de seu líder, Luc Jouret, e que estava em contato com o mundo espiritual. Tinha também a crença de que era especial e fazia algo que afetava o universo como um todo. Se Jung fosse um pouco mais psicótico, talvez tivesse conduzido seu grupo a algo semelhante ao que aconteceu na Suíça.
Folha - Como chegou a saber que Jung alterou as datas do caso do "homem do falo solar", se, como diz, os documentos que podem comprovar o suposto fato foram retidos pela família de Jung?
Noll - Minha primeira suspeita veio quando li os escritos originais de Jung em ordem cronológica. Ele fez muitas adições e modificações, até chegar à edição final das "Obras Completas". No decorrer das décadas em que mencionou o caso do homem do falo solar, Jung alterou muito os fatos.
Na primeira vez em que falou do caso, por exemplo, disse que o paciente pertencia a seu assistente, J.J. Honegger. Depois que Honegger cometeu suicídio, em 1911, seu nome sumiu dos escritos de Jung, que passou a dizer que o paciente era seu. Uma das coisas mais perigosas a respeito de Jung é que ele não se importava com detalhes históricos, mas apenas em saber se sua própria história produzia ou não efeitos emocionais na platéia.
Folha - O que sobra da clínica junguiana, se a teoria do inconsciente coletivo é falsa?
Noll - A terapia junguiana acabou se tornando uma religião moderna, algo que diz menos respeito à vida do paciente que a seus sonhos cósmicos. O sonho do paciente se enche de deuses, e isto o faz se sentir importante. O paciente começa a pensar que transcende a realidade. Se não há inconsciente coletivo, tudo isso se reduz a teatro, algo sem valor terapêutico.
Folha - Quais são os interesses da família de Jung?
Noll - A família de Jung não quer que os artigos de Honegger venham a público, pois, se de uma hora para outra Jung deixa de ser o guru espiritual que é, a venda de seus livros cai. A família ganha milhões de dólares por ano com os livros de Jung. É um grande negócio. A família não quer que Jung seja historicizado. Quer mantê-lo como guru, não como homem.
Folha - A decisão de não publicar seu novo livro sobre Jung compromete a liberdade editorial da Princeton University Press?
Noll - Eles podem fazer o que fizeram, legalmente. Mas isto compromete meu direito de expressar minhas opiniões, o direito à liberdade intelectual. Mostra a influência atual dos negócios no mundo acadêmico. É o exemplo de uma corporação fazendo milhões de dólares por ano em sociedade com uma editora universitária.
É a união do mundo dos negócios com o mundo acadêmico contra a liberdade intelectual. Eu detesto isso, mas "O Culto de Jung" é o último livro verdadeiramente crítico sobre Carl Jung. Será muito difícil escrever outro de agora em diante. A família não vai permitir.

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