São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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Uma história de disputas no interior do catolicismo

WILLIAM LI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos séculos 12 e 13 surgem na cristandade uma série de heresias que abalaram profundamente a Igreja Católica. As críticas apontavam principalmente para a riqueza material da Igreja, sua excessiva complexidade, a vida faustosa do alto clero, assim como à sofisticada e complexa elaboração dos dogmas feita por São Tomás de Aquino. Os "heréticos", lembrando o Evangelho de Mateus, pregavam a pobreza apostólica, a simplificação dos ritos, a purificação da cristandade e a próxima vinda do Espírito Santo.
São Francisco, por seu desprendimento material, simplicidade e pureza espiritual, teve vários admiradores e seguidores, desde mendigos até cardeais. Algumas narrativas afirmam que ele era "simples e iletrado" (sic) e que a base da Ordem Franciscana foi extraída basicamente de trechos de Mateus que ele teria ouvido em missas e memorizado. Deve ser lembrado aqui que o ideal de pobreza não se restringe à pobreza material, mas inclui também a intelectual.
Em 1210, a 1ª Regra é aprovada por Inocêncio 3º, ocasião em que São Francisco jura fidelidade ao papa. Francisco morre a 3 de outubro de 1226, e Elias de Cortona, vigário geral da Ordem, suscitará nela uma série de modificações que muitos encararão como uma deturpação dos primitivos ideais do santo. Foi ele quem anunciou a morte de Francisco ao mundo e encarregou-se também de seu funeral, tendo desde o princípio tomado as rédeas da Ordem.
Em junho de 1227 reuniu-se em Assis um Capítulo Geral, presidido pelo ex-cardeal Ugolino, protetor de Francisco, e que na época já tinha sido eleito papa Gregório 9º e era o protetor da Ordem. Apesar de Elias de Cortona considerar-se sucessor natural de Francisco, o papa nomeou João Parenti ministro geral da Ordem.
Assim, pouco após a morte de seu fundador, a Ordem Franciscana dissolveu-se em vários partidos com interesses diversos. Apenas os espirituais (que tiraram esta denominação de Gal 6:1, significando "verdadeiros e profundos religiosos") perseveraram na absoluta pobreza evangélica e em sua inabalável lealdade às doutrinas de São Francisco, o que ameaçava não só a estabilidade da Ordem Franciscana, mas também desestabilizava o autocrático governo papal da Igreja Católica.
Em "Os Espirituais Franciscanos", tese de doutoramento aprovada com distinção, o professor Nachman Falbel, que chegou a pesquisar os manuscritos nas bibliotecas do Vaticano, procura mostrar por que os franciscanos não conservaram os princípios originais de São Francisco de Assis, enquanto os espirituais, os únicos a tentar manter a pureza da Ordem, foram perseguidos.
A questão é complexa e não nos compete seguir aqui as trilhas abertas pelo historiador. Basta lembrar que os ideais pregados por Francisco de Assis iam frontalmente de encontro à poderosa e rica Igreja Católica de então, sobretudo na teoria tradicional acerca do poder papal e no conceito de "plenitudo potestatis" de que se valia o papa. Não é de se estranhar que o próximo papa, João 22, declarou os espirituais "heréticos".
Numa época em que a Igreja Católica está em crise e é questionada quanto à sua prática, é bastante oportuna a tese do professor Falbel para que se possa refletir melhor os rumos que a "Barca de Pedro" tomou e está tomando.

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