São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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Uma armadilha trágica do imaginário

ERNILDO STEIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Depois de lidas certas biografias de Heidegger podemos tirar, sem problemas, algumas conclusões: seus autores têm sérias dificuldades com os fatos históricos; ou, então, muitos textos são montados para ordenar os fatos, a fim de reforçar certos preconceitos; ou, ainda, cada biógrafo gira em torno de um motivo central que o move; ou, enfim, as interpretações predominam sobre os fatos, quando as histórias de vida parecem pequenas diante de uma obra monumental.
Isto parece acontecer com os escritores de biografias de Martin Heidegger, com os comentadores de fatos isolados de sua vida, com os intérpretes dos vínculos entre atitudes e seu pensamento, com os juízes de seus caminhos e descaminhos ao longo do século.
O filósofo, como simples professor universitário europeu alemão, não deixou grandes marcas exteriores na travessia do cotidiano de duas guerras mundiais e entre elas e depois delas.
Sua meta talvez fosse produzir apenas uma obra que lhe garantisse a subsistência e a da família. Atingir este objetivo -a nomeação de professor- lhe custou, primeiro, um assíduo trabalho de formação e, depois, uma carreira acadêmica nada linear, na qual os sacrifícios de várias lealdades essenciais foram o preço que pagou levando-o a uma solidão criativamente suportada.
A trajetória da biografia heideggeriana, portanto, não pode ser separada da produção de uma obra que se mostrou gigantesca. E de outro lado, o fato de a obra mesma ter tomado estas proporções leva o imaginário a exagerar os mínimos detalhes da vida do filósofo.
Se fôssemos distinguir os indivíduos entre subjetividades frágeis e subjetividades fortes, poderíamos dizer que Heidegger não era uma subjetividade frágil que depressivamente luta com a trágica travessia do cotidiano, limitando-se a sobreviver com a aplicação de seu trabalho. O que define Heidegger é a subjetividade forte, aquela que sempre está além do cotidiano, em que sempre há uma desproporção entre o dia-a-dia e os projetos pessoais.
O filósofo sofre por isso com o imaginário que lhe causa o "mal-estar na cultura". Sua obra irá retratar esta luta contra os limites do simbólico, por isso ela não será jamais um pensamento voltado para o estabelecido e para a ação a ser orientada nele.
A filosofia heideggeriana é essencialmente transgressora do cotidiano. Mas não ao modo de recusar este cotidiano como tema central de sua especulação. A analítica do cotidiano se constitui como empresa para dela mesmo arrancar a transcendência.
Esta talvez seja a primeira fonte do elemento tensional que atravessa sua obra. Não é preciso ter lido muitos de seus livros para ser surpreendido, num estilo tosco, às vezes grandioso, por este duplo movimento paradoxal: apanhar a cotidianeidade e o mundo comum do ser humano e dele extrair a dimensão fundadora de uma filosofia que quer superar a metafísica.
A novidade no estilo de interpretação com que Heidegger aborda os autores da história da filosofia se constitui exatamente nisto: mostrar que não viram o óbvio, que construíram seu sistema para encobrir o que de si já sempre se mostra.
Depois de "Ser e Tempo", que nasceu de um ciclo de interpretações dos filósofos gregos e da construção de um universo terminológico e vocabular por meio de outras leituras da história da filosofia, Heidegger conseguira encontrar características próprias para a fenomenologia.
Com esta ferramenta metodológica é que ele escreve as duas primeiras seções da primeira parte de "Ser e Tempo". É isto que constitui propriamente o projeto de sua ontologia fundamental. É nesta matriz que se podem encontrar retrospectivamente os elementos teóricos produzidos desde o começo dos anos 20, bem como acompanhar as análises e interpretações que se seguiram de 1927 a 1931.
Se formos avaliar estes anos 20 como uma espécie de totalidade, podemos com segurança ter uma compreensão dos parâmetros básicos que delimitam sua interpretação da história da filosofia e ao mesmo tempo, podemos vislumbrar os principais elementos teóricos que ele faz surgir a partir de sua interpretação dos autores da tradição metafísica.
O que causa estranheza num estudo mais profundo é que as convicções que o filósofo apresenta no final dos anos 20 diante do homem, da história, do poder, do Estado, do destino dos povos e especificamente da universidade, não são fruto de uma pesquisa científica como poderia ser realizada no campo das ciências humanas.
Suas posições nascem de certas constantes que são ao mesmo tempo resultados da interpretação da história da filosofia e de certas especulações de ordem filosófica que se articulam e consolidam num horizonte compreensivo que sustenta um esforço de romper com a compreensão cotidiana e com os lugares-comuns da ordem estabelecida.
O fato de no projeto de "Ser e Tempo" estar previsto uma destruição da história da metafísica, a partir do conceito de tempo, produzido na ontologia fundamental, e de o filósofo não ter escrito esta segunda parte da obra, deve-se talvez em parte às circunstâncias de o filósofo ter realizado esta destruição da metafísica nas diversas obras que escreveu, como seminários e preleções, e que agora foram publicadas como obra póstuma. Mas não há dúvida de que o conceito de destruição fora-se tornando muito amplo, até incorporar certos comportamentos do filósofo diante do estabelecido.
Talvez seja este o elemento que tenha tirado o filósofo das preocupações do cotidiano de sua vida para estabelecer certas hipóteses sobre a realidade de sua época. Isto vinha diretamente ao encontro daquilo que antes chamei a subjetividade forte do pensador. De tal maneira que sua atividade filosófica passou a ser por ele representada, cada vez mais, como uma luta contra o simbólico que impunha regras, leis e instituições, alimentando desta maneira a tendência de sua subjetividade a dar primazia ao imaginário.
Aquilo que biograficamente poderia representar uma espécie de continuidade da existência do filósofo foi perturbada por meio de certas rupturas não previstas: seu casamento com uma mulher protestante, seu afastamento como candidato à cátedra da concordata com Roma, o acolhimento mais íntimo por Husserl e, assim, sua cada vez maior aceitação entre os pensadores protestantes, sua ruptura formal com a confissão católica (era chamado de apóstata), e, por fim, seus numerosos conflitos com a filosofia estabelecida da época, sobretudo o neokantismo.
Todas essas experiências ao mesmo tempo em que exigiam um grau acentuado de adaptação a situações novas, passaram a reforçar no plano das tomadas de decisões pessoais e de suas intervenções na academia, o elemento de destruição que em "Ser e Tempo" era apenas um projeto teórico de interpretação da história da filosofia.
Esta combinação entre o projeto filosófico de destruição e a incorporação da destruição como elemento de crítica à realidade histórica abriu na vida e na obra de Heidegger um espaço extremamente perigoso. Talvez o elemento fundamental desse espaço tenha-se tornado uma certa incapacidade em reconhecer no simbólico um limite fundamental, estabelecido pelas leis, pelas regras, pelas instituições e pelo conhecimento científico em geral, dando por meio da interpretação filosófica um extremo poder ao imaginário.
É nessa zona de perigo que o pensador se movimenta a partir do começo dos anos 30. É assim que ele passa a revisar sua produção dos anos 20, que se constituía basicamente pela consolidação da crítica à metafísica e da formação de um novo pensamento, aliando-se agora com certos pensadores (Hõlderlin, Nietzsche, Schelling) que vinham confirmar, ao menos na interpretação do filósofo, certas representações com relação às realidades históricas e políticas da época.
Por mais dolorosas e trágicas que tenham sido as consequências concretas da postura de Heidegger como reitor da universidade e como adepto (condicional) do nazismo, em sua forma inicial, talvez tenhamos que atribuir as opções do filósofo a um elemento de exacerbação de seu imaginário, de um lado alimentado pelas interpretações filosóficas e consequentes especulações teóricas e, de outro lado, consequência de sua ignorância dos estudos científicos sobre poder, Estado, democracia etc., e sua ingenuidade em sonhar que pela filosofia pudesse ser orientado para opções tão graves como as que fez a partir de 1933.
Longe de querer minimizar as escolhas do pensador e os equívocos que o levaram a imaginar que no contexto de uma "nova" universidade, dentro do regime nazista, fosse possível enfrentar aquilo que ele designava o "encobrimento do ser", as ameaças da exacerbação da técnica e aquilo que em diversos textos chama de "comunismo" e "americanismo", tendo presente aplicações históricas da "vontade de poder" de Nietzsche, não nos podemos furtar ao exame de uma lógica profunda que conduziu os processos de decisão e de opções históricas de Heidegger.
As observações que fizemos desde o começo mostram que se foi construindo, fora dos núcleos teóricos de sua obra, um encadeamento de certas evidências, puramente pessoais, com elementos biográficos e processos inconscientes, opções que levaram o filósofo a pensar poder extraí-las de sua interpretação da história da filosofia, para erigi-las como um dogma ou um saber privilegiado.
Este encadeamento passou a ter uma tal força de representação -aí reside o poder destruidor do imaginário-, que o filósofo pensou poder enfrentar as tendências históricas da época, as perversões das relações de poder do totalitarismo, como se fossem consequências da crise e do fim da metafísica, mas que eram simplesmente um produto de sua interpretação de filósofo solitário dos textos clássicos da filosofia ocidental.
A tragédia do imaginário heideggeriano que o fez sofrer as consequências de sua ação desmedida para além dos parâmetros do cotidiano, certamente fê-lo perceber, como confessa a Karl Jaspers numa carta, "a estupidez e vergonha de sua adesão ao nazismo". Mas, numa espécie de resistência solitária aos rituais e às regras do mundo simbólico, ele nunca se arrependeu em público, nem emitiu uma palavra sobre o Holocausto. Talvez porque está plantado no coração de sua filosofia que os rituais judaico-cristãos do arrependimento nada repõem no lugar e são apenas uma encenação da finitude, mas não um suportar as suas últimas consequências. Nem mesmo Paul Celan pôde ouvir a esperada palavra na visita que fez ao filósofo na sua cabana da Floresta Negra. Nada mais emocionante que ler "Todtnauberg", o poema de Celan sobre esta visita.
Esta recusa de entrar no simbólico que marcou tão fortemente sua vida, talvez nos possa fazer compreender certos momentos em que simplesmente o "real" (o sinistro) o avassalou e arrastou a gestos que revelam momentos quase psicóticos.
1) O discurso de posse, ao assumir o reitorado, traz algo da grandiosidade de um estado de surto em que a plena consciência é atropelada pelo delírio.
2) A fuga, de bicicleta, pelos caminhos da Floresta Negra, levando consigo parte dos manuscritos para salvá-los dos bombardeios, em algum esconderijo, para o futuro, pode significar a convicção da importância de sua obra a seus olhos. Mas não podemos deixar de ver no gesto, a paranóia de um Quixote ou de um Nietzsche diante das forças do mal.
3) A carta que, já no fim da guerra, escreve a um colega de Tübingen, também revela o delírio do "profeta". "Talvez a Alemanha tenha que experimentar o abismo do aniquilamento para encontrar seu verdadeiro destino".
4) Ainda que o desmaio do filósofo diante da comissão de desnazificação que o interrogava possa ser visto como uma histeria conversiva, a maneira como descreve sua posterior internação no sanatório e seu passeio pela neve com o terapeuta von Gebsattel apresenta uma onipotência diante do estresse e do pânico, que remete a um certo poder forclusivo de sua filosofia e a fé mágica no pensamento.
O filósofo que tanto falou do oculto, do velado, da latência do ser, não se apercebeu do latente que determinou parte de sua biografia na forma do inconsciente. Talvez no futuro as biografias levem em conta esta parte da vida do filósofo que não se escreve sem a psicanálise.
As biografias de Heidegger escritas até agora são relativamente pobres, com exceção da escrita por Safranski -"Um Mestre da Alemanha - Heidegger e Seu Tempo".
Algumas são profundamente responsáveis na pesquisa que fazem, como a de Hugo Ott -"A Caminho de uma Biografia de Martin Heidegger". Outras são raivosas e deturpam fatos e pensamentos, por ignorância, má-fé e oportunismo, como a de Victor Farias -"Heidegger e o Nazismo"-, ou são totalmente tendenciosas, procurando descobrir evidências históricas, utilizando Heidegger como álibi em seus esforços para diminuir a perversidade do nazismo e do Holocausto, como a de Ernst Nolte -"Uma Biografia de Heidegger".
Estamos na quinta onda heideggeriana. As primeiras, contra o filósofo, e a última, procurando ver mais claro a partir de novas informações e sobretudo à luz da "Obra Póstuma".
1) A primeira onda se situa nos anos 30, quando assumiu a reitoria da Universidade de Freiburg e deu sua adesão formal ao nazismo em ascensão e se demitiu no décimo mês de quatro anos de reitoria;
2) A segunda onda, no fim da guerra, por ocasião de seu julgamento e demissão da universidade, com episódios notáveis que devem ser mais difundidos a bem da verdade;
3) A terceira onda, provinda da França, no fim dos anos 50 e 60, já com posições de ataque e defesa e sobretudo em torno de sua obra;
4) A quarta onda, desencadeada pelo livro de Victor Farias e, desde a França, se espalhando pelo mundo. Esta onda produziu uma série de livros, sobretudo em favor do grande pensador, no fim dos anos 80;
5) Finalmente a quinta onda, nos anos 90, profundamente séria, em que se reconhece no filósofo do século a grandeza de um pensamento e a inauguração de um paradigma na filosofia, revolucionário, e que desperta interesse em todos os centros de filosofia e junto às melhores cabeças filosóficas.
E assim estamos com Heidegger apenas no começo. A passagem do milênio é heideggeriana, sem dúvida alguma, e o próximo século se ocupará muito com o estudo da obra heideggeriana que vai sendo publicada numa edição completa, ainda que provisória sob muitos aspectos. Mas esta iniciativa, pela primeira vez, nos põe em contato com uma obra conjunta de mais de 70 volumes. Não é ainda a obra póstuma crítica, mas nos dá o consolo de as últimas gerações que se ocuparam com o grande filósofo terem a visão sobre o todo de seu pensamento.

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