São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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As relações instáveis de um triângulo amoroso

RAY MONK.

'Através dessa janela que é meu eu, só vejo horror, escuridão e o poço rubro do Inferno'
RAY MONK
Bertrand Russell conheceu Vivien Eliot no dia 9 de julho de 1915, duas semanas apenas depois de ela casar-se com T.S. Eliot. Já estava claro que o casamento era um desastre. Poucos dias mais tarde, Russell registrou suas impressões numa carta a Lady Ottoline Morrell.
"Sexta-feira à noite jantei com Eliot, meu aluno em Harvard, e sua mulher recém-casada. Pelo mistério que ele fizera, eu havia imaginado que ela seria terrível, mas não é tão má assim. É frívola, um pouco vulgar, aventurosa, cheia de vida -artista, acho que ele falou, mas eu a teria tomado por atriz. Ele é lânguido e requintado; ela diz que se casou com ele para estimulá-lo, mas constata que não é capaz disso. Evidentemente ele se casou com ela para ser estimulado. Acho que ela vai se cansar dele em pouco tempo. Ela se recusa a acompanhá-lo aos Estados Unidos para visitar sua família, porque tem medo de submarinos. Ele tem vergonha do casamento e sente-se muito grato a quem a trata com atenção."
Vivienne Haigh-Wood (ela encurtou seu primeiro nome) vinha de uma rica família de fazendeiros. Já então, aos 26 anos, mostrava sinais da instabilidade mental que mais tarde iria alarmar Eliot e Russell, embora apesar disso (ou talvez, até certo ponto, por causa disso) exercesse uma atração estranhamente magnética.
Quando convidou Russell para jantar naquele 9 de julho, Eliot tentava conseguir sua ajuda para cuidar de Vivien durante as seis semanas que iria passar nos EUA. Vivien, conta Russell, se negara a ir, e sem dúvida um dos cuidados com ela pelos quais Russell relata que Eliot ficou tão grato foi o fato de que prometeu visitá-la durante a ausência de Eliot.
Quando Eliot retornou da viagem, por volta de 3 de setembro, Vivien e Russell já eram amigos íntimos, trocando confidências e fazendo planos conjuntos. Haviam decidido que o casal Eliot se mudaria para o quarto de hóspedes no apartamento de Russell, em Bury Street. O grau de intimidade que Russell e Vivien atingiram durante a ausência de Eliot pode ser inferido do rascunho de uma carta de Russell a Ottoline Morrell, escrita pouco depois do casal Eliot partir para Eastbourne numa lua-de-mel atrasada. "Estou preocupado com os Eliots", começou Russell:
"Parece que a espécie de 'pseudo-lua-de-mel' deles em Eastbourne está sendo um fracasso estrondoso. Vivien já está cansada dele, e, quando cheguei aqui, encontrei uma carta desesperada dela, escrita nas profundezas do desespero e não muito longe do suicídio. Já escrevi a ela várias cartas repletas de bons conselhos, e ela parece estar mais ou menos dependendo de mim. Já tomei os dois a meu cargo, a tal ponto que não ouso mais abandoná-los. Acho que ela vai mais ou menos se apaixonar por mim, mas não há nada a fazer. Estou interessado na tentativa de endireitá-la... No momento ela está punindo meu pobre amigo por haver iludido sua imaginação. Não vou me apaixonar por ela, nem demonstrar mais afeto do que parece ser preciso para reabilitá-la. Mas ela realmente possui algum valor por si mesma, apesar de estar tão distorcida e enfraquecida pela vida, falta de disciplina, falta de objetivo e falta de religião".
Será que o próprio Russell acreditava nessa bobagem? Ottoline não acreditou. O que ela enxergou na carta foi principalmente o fato de que Russell estava "obviamente interessado" em Vivien. Respondeu imediatamente, apontando a falha evidente no argumento de Russell:
"Não acho que a ajudará nem ajudará a vida do casal Eliot a ser mais feliz se você a deixar apaixonar-se por você... Sinto que você corre um risco muito grande e te peço e imploro que tome muito, muito cuidado -pois se você quiser dar palestras ou fazer qualquer tipo de trabalho público, qualquer escândalo desse tipo prejudicará suas possibilidades totalmente, e duvido que ela valha tudo isso".
O que T.S. Eliot achava da intimidade que nascera entre Bertrand Russell e sua mulher? Ele parece tê-la aceito com equanimidade, chegando até a incentivá-la. Será possível que se sentisse grato por isso, como Russell dá a entender?
Vivien tinha um histórico de doenças: tivera tuberculose quando criança e mais tarde sofrera uma série mais ou menos constante de dores de cabeça, de estômago e câimbras. Ela tomava drogas, entre elas depressivos à base de morfina, para acalmar suas oscilações muitas vezes violentas de estado de ânimo. Sua mãe a considerava sempre à beira da "insanidade moral". E, fato sem dúvida ligado a esses outros sintomas, Vivien tivera desde os 12 anos um ciclo menstrual irregular e excessivamente frequente, que lhe causava grande constrangimento e mal-estar.
Já foi argumentado que suas menstruações excessivas provocariam repulsa em Eliot, que em consequência disso não conseguiria manter relações sexuais com ela. À luz desse fato, sua atitude em relação ao flerte de Vivien com Russell e as declarações deste de que Eliot era "grato" a ele por flertar com Vivien começam a fazer um certo sentido. Não é possível, então, que ele ficasse contente, por Vivien, por Russell estar dando tanta atenção a ela? E também, é claro, contente por ele mesmo, porque isso o livrava de suas obrigações?
No início de 1916, Russell estava ocupado escrevendo uma série de palestras contra o alistamento militar obrigatório. "Não existe mais hediondo atentado à liberdade", disse ele, "do que forçar homens a se matarem uns aos outros, quando sua consciência os manda viverem em paz".
No dia seguinte à publicação desse artigo e à aprovação, conforme o previsto, da primeira leitura da Lei do Alistamento Militar, Russell foi a Torquay em férias com Vivien. Afirmou a Ottoline que não queria ir (e não podemos nos furtar da impressão de que seus protestos soam um pouco exagerados). "Seremos bem comportados", acrescentou:
"Não há tendência a exceder os limites da amizade, muito pelo contrário. Realmente já fiz tudo que me propus a fazer por eles, e eles já estão perfeitamente felizes um com o outro. Começarei a sair de suas vidas assim que esta semana terminar".
Ficaram em Torquay apenas cinco dias, de 7 a 12 de janeiro. "Detesto isto", Russell escreveu a Ottoline, "mas ela parece gostar".
Enquanto Russell estava em Torquay, Eliot lhe escreveu agradecendo-o mais uma vez por sua generosidade. "Vivien diz que você tem sido um anjo com ela", escreveu.
"Estou certo de que você fez tudo que era possível e lidou com ela da melhor maneira -melhor do que eu. Muitas vezes me pergunto como as coisas teriam saído se não fosse por você -acredito que até deveremos a vida de Vivien a você."
Embora Russell reproduza esta carta na íntegra em sua "Autobiografia", infelizmente deixa inteiramente inexplicado o porquê dos Eliots possivelmente deverem a vida de Vivien a ele.
Em 1917 Russell havia iniciado -e terminado- um caso apaixonado com a atriz Colette O'Neil, um relacionamento que seria um dos mais importantes de sua vida. As cartas que trocaram nessa época revelam uma oscilação extrema entre uma emoção e outra. Em setembro Russell havia escrito que Colette era sua "janela para toda a glória do universo. Através dessa outra janela que é meu eu, só vejo horror, escuridão negra e o poço rubro do Inferno".
Apenas dois dias mais tarde, já não aguentava mais: "A região inteira de minha mente que você habitava parece ter-se consumido em fogo", escreveu a Colette. "Nada restou para nós dois senão tentarmos esquecer um ao outro. Adeus."
Num esforço para deixar esse caso para trás, Russell voltou-se a Vivien outra vez. Menos de uma semana depois de pôr fim (como eles dois pensavam) a seu relacionamento com Colette, Russell já fazia planos para morar no campo com o casal Eliot.
Parece que a idéia era recriar, até certo ponto, a vida que compartilharam em 1915, com Russell e Vivien vivendo juntos durante a semana e Eliot reunindo-se a eles nos fins-de-semana.
Enquanto procurava uma casa apropriada, Vivien ficou hospedada na fazenda Senhurst, em Abinger Common, Surrey. É impossível dizer quanto tempo Russell passou com Vivien enquanto ela viveu ali, mas uma longa carta que escreveu a Colette no dia 30 de outubro deixa transparecer que passou pelo menos uma noite com ela.
O objetivo principal dessa carta era dizer a Colette que ainda a amava e a queria de volta, mas ele também lhe fez um relato angustiado de seu breve retorno a Vivien. "Te contei que estava pensando em alugar uma casinha de campo com os Eliots", e continua:
"Eu pretendia me ater a relações meramente amigáveis com a sra. Eliot (exceto talvez em ocasiões muito raras). Mas ela ficou felicíssima por eu ter voltado, foi muito boa comigo e queria muito mais do que amizade. Pensei que conseguiria administrar a coisa -eu a levei a esperar mais, se conseguíssemos a casinha -e no fim passei uma noite com ela. Foi um inferno absoluto. Aquela noite foi asquerosa de maneira que nem sequer consigo descrever. Ocultei dela o que estava sentindo -recebi uma carta muito feliz dela, depois. Tentei ocultar de mim mesmo -mas desde então tudo tem vindo à tona em pesadelos terríveis que me acordam no meio da noite e me deixam nu, sem poder me auto-iludir. Até agora eu não disse uma palavra a ela -quando o fizer, ela ficará infeliz. Eu gostaria da casinha se fôssemos apenas amigos, mas não em qualquer outros termos -na verdade, não consigo enfrentar qualquer proximidade maior... Excetuando você, a vida não tem cor nem alegria para mim. Uma espécie de odor de corrupção permeia tudo, até me deixar enlouquecido de asco. Sou obrigado a partir o coração da sra. Eliot e não sei como enfrentar isso. Não pode ser feito de maneira repentina".
Uma maneira de interpretar essa carta é supor que Russell, tendo finalmente conseguido levar Vivien para a cama, se sentira repelido por seu fluxo menstrual e determinado a nunca mais dormir com ela. É possível, e se for assim, os termos que ele emprega fariam algum sentido.
Mas isso não explicaria o elemento mais espantoso da carta: seu tom abjeto de derrota moral, o tom confessional em que Russell fala em se auto-iludir e do "odor de corrupção" que a tudo permeia. Isso não soa como a expressão de uma repulsa puramente física; mais do que isso, lembra o tom de um homem nauseado principalmente consigo mesmo e com a descoberta das profundezas de iniquidade moral às quais é capaz de mergulhar.
Em todas as suas cartas desse período, as metáforas que Russell emprega possuem uma consistência notável. Vistas em conjunto, montam um quadro de alguém que desceu aos infernos, teve seu nariz esfregado na lama, por assim dizer, assimilou algumas verdades horríveis sobre a humanidade e sobre si mesmo.
Agora, nauseado com o "odor da corrupção", ele dá a impressão de que, como resultado de sua ruptura com Colette, havia se comportado de maneira que o envergonhava profundamente, que apesar de saber que não estava apaixonado por Vivien teria, no fim das contas, que magoá-la -até mesmo partir seu coração.
Não se sabe o quanto de tudo isso Colette compreendeu. Ela respondeu sua longa carta de 30 de outubro num tom de simpatia e encorajamento, dizendo que voltaria a Russell sem arrependimentos. "Sua carta me trouxe grande felicidade", respondeu Russell em 1º de novembro. "Eu não esperara que minha carta te fizesse voltar."
Vivien ainda estava no campo ("portanto não terei que vê-la esta noite") e assim ele estava livre para encontrar-se com Colette mais cedo do que imaginara: "Esta noite eu não quero discutir e raciocinar e explicar -quero apenas a sensação de descansarmos juntos". A única coisa que Colette não lhe proporcionava, Russell disse a ela, era "o que eu não deveria desejar -o sentimento de possessão".
O encontro de Russell com Vivien foi adiado até 6 de novembro. No dia seguinte, ele o descreveu como tendo sido "muito satisfatório". "Consegui me safar da parte problemática da ligação por iniciativa dela -ela se comportou com grande generosidade -é um alívio enorme".
Parece que esse alívio não foi compartilhado por Vivien, cuja vida, após seu rompimento final com Russell, foi marcada por uma série de doenças, crescente instabilidade mental, e, finalmente, pelo abandono de seu marido.
Depois do nascimento do primeiro filho de Russell, em novembro de 1921, Vivien lhe escreveu uma carta de parabéns à qual conseguiu conferir um tom alegre e até mesmo brincalhão ("Tom diz que tem certeza de que o bebê terá orelhas pontudas, por isso você não precisa se preocupar. Mesmo que não estejam pontudas agora, ficarão assim com o tempo"), mas nessa época já estava gravemente doente.
Na primavera de 1923, Vivien foi considerada à beira da morte, sofrendo uma gripe séptica provocada em parte pela desnutrição consequente da dieta que havia sido persuadida a seguir para curar seus outros sintomas mentais e físicos. Recuperou-se, mas sua saúde e seus nervos continuaram extremamente frágeis. Em 1925, Eliot escreveu a Russell que, com relação a Vivien, "tudo acabou como você previu dez anos atrás. Você é um grande psicólogo".
Um mês depois escreveu outra vez, dizendo a Russell: "O que você sugere me parece ser o que deveria haver sido feito anos atrás, é claro". Qual foi a sugestão de Russell? Que Eliot deixasse Vivien? Que ela fosse internada num hospício? As duas coisas acabaram sendo feitas. Eliot a deixou, finalmente, em 1933, e em 1938 ela foi internada na Northumberland House, um hospital mental particular no norte de Londres, onde morreu em 22 de janeiro de 1947.
É impossível afirmar até que ponto o declínio de Vivien foi afetado por seu caso com Russell -se é que o foi. Mas oito anos após sua morte, Evelyn Waugh registrou em seu diário uma conversa que teve com Graham Greene na qual, entre várias outras fofocas possivelmente infundadas, este lhe disse que: "A insanidade da sra. Eliot foi consequência de ela ter sido seduzida e abandonada por Bertrand Russell".

Copyright Ray Monk. Tradução de Clara Allain.

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