São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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A compulsão por leis

REINHOLD STEPHANES

Na formulação serena e firme do saber jurídico da transcrição acima, descobre-se uma denúncia sobre a tendência que está causando perturbação para o estabelecimento de uma nova ordem de previdência no Brasil.
Pretende-se ver colocados na emenda constitucional textos para algumas matérias específicas, esquecendo-se de que na ordem jurídica existe uma hierarquia. Mas o problema parece não estar centrado em verdades tão imutáveis quanto indiscutíveis. É uma questão de realidades criadas pelo sistema de desinformação (que é a sucessiva assimilação de informações distorcidas). Uma verdade não se modifica através dos tempos, embora o tempo colabore ocasionalmente para criar realidades aparentes.
De um modo geral, as pessoas concordam com a reforma da Previdência, nas bases em que ela tem sido colocada pelo governo. Elas têm um "sentimento da coisa". Mas essa energia potencial é fustigada pela desinformação e logo muitos começaram a repetir que as questões como licença-maternidade ou contagem de tempo de contribuição ou ainda limite de idade para aposentadoria deveriam ser contempladas pela emenda constitucional.
Qualquer estudante de direito sabe que, por exemplo, crimes não se abordam na Constituição. Eles ficam por conta da lei ordinária. Pode haver um imenso barulho sobre um determinado tema. Todos podem estar com a razão sobre um determinado aspecto legal, mas a matéria não será constitucional.
Se o processo de defecção criminal -no caso da sonegação fiscal, por exemplo- está lento ou burocratizado, não é na emenda constitucional que se deve mexer. Se o limite de idade para aposentadoria está muito baixo, na opinião de uns, ou muito elevado, no entender de outros, não é a emenda constitucional que vai definir a questão. Se é preciso ficar mais clara, mais bem definida, a questão da contagem do tempo da licença-maternidade para fins de aposentadoria, também não é na emenda constitucional que se deve inserir uma nova definição a esse respeito.
Ainda que todos os implicados ou interessados estejam cobertos de razão, na tese, no mérito a emenda não tem que ser mexida com essa finalidade. A técnica constitucional não o indica. A reforma, sim, como um todo, em sua abrangência específica, poderá abordar tais questões -e deve fazê-lo-, mas na legislação própria.
É muito provável que estejamos diante de um problema mais sociolinguístico do que jurídico-constitucional, uma vez que, como visto, não parece tratar-se da aceitação de uma verdade, mas da construção de uma realidade por desinformação ou agregação de conceitos distorcidos. É a tendência entre os "consumidores" das leis. Entre os "produtores" delas igualmente parece ocorrerem desvios operacionais.
Tentamos acompanhar a velocidade dos acontecimentos, nos tempos atuais ditada pela informática e pelos recursos que disponibiliza ao alcance de todos. Isso pode estar conduzindo à perigosa sensação de que todos entendemos de tudo. Seria um problema nosso, decorrente das facilidades proporcionadas pela automação. Parece tão simples formular um novo texto na sedução da tela colorida!
Nesse sentimento geral, entre produção e consumo normativo, de que a forma justifica o conteúdo, as pessoas, o simples cidadão estaria esperando uma emenda constitucional em que tudo fosse expressamente registrado em matéria de previdência, desde o acontecimento da maternidade à ocorrência da velhice. Uma existência toda na formatação constitucional. Como se isso significasse garantia para não termos mais nenhum problema com a legislação.
No âmbito operacional das normas, a situação fica ainda mais complicada, alarmante até. Existe uma legião de servidores, dentre eles mais de 700 procuradores, empenhados na interpretação e desate de questões normativas, os quais poderiam estar trabalhando na criação de novas alternativas para a sociedade em vez de no desembaraço de casuísmo. É um quadro que não conseguiu evitar fraudes nem baixar o número de descontentes, por mais conscientes e empenhados em suas obrigações que sejam os nossos servidores. Muito esforço, capacidade e energia criativa estão sendo usados sem um resultado compensador na interpretação e na consolidação das normas.
É verdadeiramente um quadro que implica mudança de consciência coletiva e deve começar pela reforma da Previdência, que é o foro de onde se está buscando a conquista de padrões mais eficientes, com resultados mais justos e ágeis para a sociedade.
Somente no âmbito do MPAS, temos em circulação cerca de 1,4 milhão de processos. Dentre esses, 600 mil relativos à concessão de benefícios. E não é por falta de leis e normas. Ao contrário, pelo excesso. As leis 8.212 e 8.213, ambas de 91, no curto espaço de menos de cinco anos, já foram alteradas por 27 outras leis.
"Por esmiuçar a casuística", como denunciado por Ruy Barbosa, "imaginando resolver de antemão as emergências possíveis na sua variedade infinita", a "legismania" (acrescentamos) devastadora tem provocado enormes estragos, com prejuízos incalculáveis. E esses prejuízos são levados a débito do contribuinte, justamente aquele cidadão comum que, no seu ingênuo clamor, subjugado pela desinformação, luta por mais desdobramentos normativos.

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