São Paulo, domingo, 26 de maio de 1996
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Doutor Vida

NELSON DE SÁ

Sai a cirurgia plástica. O interesse e milhares de dólares ou reais das mulheres, das que podem dispor deles, passam para a reprodução. Nas clínicas de fertilização chegam arquitetas, empresárias, advogadas. No dizer do especialista Eduardo Motta, "profissionais que estavam lutando e, quando quiseram ter um filho, não conseguiam mais".
A atividade crescente coincide com a fama de Paulo Cesar Serafini, uma das estrelas da nova constelação -nos Estados Unidos. É dele a Huntington, na Califórnia, uma das maiores clínicas norte-americanas para reprodução humana, com pacientes japonesas, européias, mexicanas, além da maioria norte-americana e de muitas brasileiras.
Conflito
A concorrência na fertilização a qualquer preço, para mulheres com dificuldade para engravidar, chegou ao Brasil trazida pelo próprio Serafini. Ele montou duas clínicas de mesmo nome, em Vitória (ES) e, no ano passado, em São Paulo, associado a Eduardo Motta. E detonou um pequeno conflito médico no país.
Paulo Cesar Serafini, 45, é um gaúcho que se transferiu há 18 anos para os EUA, atrás da cura para uma grave doença óssea de seu primeiro filho. Ginecologista e obstetra pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, aos poucos especializou-se em reprodução humana. Hoje a sua clínica, em Pasadena, região de Los Angeles, é a maior no mundo, por exemplo, em mães de aluguel.
Ele não é recebido com gentilezas pelos colegas brasileiros. O médico Nilson Donadio, presidente da Comissão Nacional de Técnicas de Reprodução Assistida, também estabelecido em São Paulo, diz que ele "devia ficar no lugar dele", nos Estados Unidos. E mais, "o que tem de especial? Nada, nada mesmo".
Serafini rebate com um longo currículo que inclui formação nas universidades de Maryland e do Sul da Califórnia, o grau de médico especialista pela Sociedade Americana de Obstetrícia e Ginecologia, mais de 300 trabalhos publicados. E compra a briga, ao comparar as pacientes brasileira e americana. "A brasileira é mais dócil e conhece menos o assunto. Essa foi uma das grandes coisas por que eu quis voltar, para introduzir o conhecimento para essas pessoas."
Para tanto, está com um projeto de informação ao público que inclui "como a paciente deve se portar para saber se está sendo tratada com qualidade". Perguntado se não vai arrumar mais problemas com os médicos no Brasil, diz, com certa ironia, "é parte da vida".
Brasileiro
Quanto ao fato de ser ou não brasileiro, o médico responde dizendo ter pago Imposto de Renda no Brasil estes anos todos, por exemplo. Ou dando sua inscrição médica nas regiões em que atua no país.
Ainda assim, seu sotaque mostra uma estranha mistura entre a influência americana, com erros de gênero e o recurso a palavras em inglês, e expressões gaúchas da juventude, como "tchê", "tu". De seus filhos, o primeiro, Gustavo, 19, é brasileiro. O segundo, Marcelo, 16, americano.
Significativo, certamente, é que não esqueceu o futebol. Em telefonema tarde da noite, durante o primeiro jogo entre Grêmio e Corinthians pela Taça Libertadores da América, perguntou ansioso pelo resultado. O placar de dois a zero, àquela altura, fez com que entoasse animado os primeiros versos do hino de Lupicínio Rodrigues: "Até a pé nós iremos..."
Técnica
Mais importante do que o debate nacionalista é a polêmica em torno da técnica privilegiada por Serafini. Ele usa diversas, a partir do aconselhamento reprodutivo por que passam todos os casais e que "vai desde o coito programado até a adoção".
Outras, pela ordem de execução na clínica na Califórnia, são a simples inseminação intra-uterina; a cirurgia com vídeo-laparoscopia para mulheres com endometriose, uma enfermidade no útero, causa comum de infertilidade; a fertilização in vitro; a ovodoação, com doadora anômima; e as mães de aluguel -prática só realizada nos Estados Unidos.
A polêmica está na fertilização in vitro, o bebê de proveta. A regra no Brasil é a transferência do embrião para o útero, na técnica européia. Serafini privilegia a transferência do zigoto (pré-embrião) ou do óvulo e do espermatozóide separados para a trompa, na técnica americana.
Segundo Serafini, a técnica americana alcança maior sucesso -37% a 39% de "bebê em casa", contra 19% da européia. Segundo médicos brasileiros, como Dirceu Henrique Mendes Pereira, "no fundo, os resultados são similares".
A diferença, para Pereira, como para Nilson Donadio, é o custo.
A transferência para o útero "é mais simples, mais popular". A transferência para a trompa exige anestesia e procedimento cirúrgico.
Serafini rebate dizendo que uma nova tecnologia, a microlaparoscopia, que introduziu na clínica californiana em novembro do ano passado, permite fazer a transferência para as trompas com anestesia local. "A paciente vai para casa em duas horas e, financeiramente, há uma redução de custo de US$ 1.500 a US$ 2.000."
A polêmica vai longe. Donadio, por exemplo, compara os preços dos tratamentos nos EUA (US$ 5.500, segundo ele) e na França (US$ 1.840) para sublinhar vantagens da técnica européia. Eduardo Motta, que montou com Serafini a clínica paulistana, afirma que o custo na França é subsidiado pelo governo.
Em meio ao bate-boca, inesperadamente, o próprio Nilson Donadio pára para elogiar Paulo Cesar Serafini. Diz que ele é muito competente ("mas os brasileiros também são") e se declara um bom amigo dele. Calmo, diz que a história pessoal do médico gaúcho estabelecido nos Estados Unidos é emocionante.
Dá como exemplo a extrema dedicação ao filho. É o próprio Serafini quem diz, "ele é o motivo único da minha força, tudo o que eu faço eu faço orientado por ele". Gustavo, logo que nasceu, foi levado aos Estados Unidos. Em 18 anos, melhorou muito. "Hoje, graças a Deus, ele está bom. Quer dizer, bom dentro dos parâmetros dele."
Religião
Gustavo vive sozinho em Chicago e cursa direito, "e está indo muito bem". A luta contra a doença do filho e um terremoto que, dois anos atrás, destruiu sua casa, sem vítimas, levaram Serafini a tornar-se religioso. Católico, ele menciona Deus e questões religiosas a todo momento. Está sempre a falar em "valores religiosos" na prática médica.
Foi por meio de um religioso, um rabino de Nova York, que ele foi tratar a primeira brasileira, nos Estados Unidos, em 1986. Era uma judia ortodoxa que, depois de muitas tentativas no Brasil, apelou ao rabino, que indicou Serafini na Califórnia. "Como é que ele soube do meu nome nunca foi explicado", lembra o médico, rindo.
Ela ficou grávida já no primeiro tratamento e, de volta ao Brasil, iniciou o que Serafini, sem encontrar as palavras em português, chamou de "snowball phenomenon", ou bola de neve. A primeira clínica Huntington no Brasil seria aberta em 94, em Vitória.
Kanduxa Mendes Pereira, 36, gerente da Daslu -butique refinada paulistana-, foi sua paciente na Califórnia e depois em São Paulo, e fala com entusiasmo do médico. Fez a fertilização in vitro e a transferência via útero ("eu não faço laparoscopia"). Diz ter ficado "satisfeitíssima" e ter recomendado "para muitas amigas".
Despreocupada da polêmica entre os médicos, ela distancia Paulo Cesar Serafini dos demais. "A gente tem ótimos profissionais", diz. "Mas eu não comparo nenhum a ele. A competência dele é acima de qualquer outro."

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