São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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Vacina da varíola faz 200 anos

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

O rei de Burma estava entre suas vítimas, o rei do Sião também e, provavelmente, faraós do Egito, mas não se tratava de uma predileção aristocrática, excludente; ela, democraticamente, "estava em toda parte", escreveu Macaulay em sua "História da Inglaterra", "enchendo de cadáveres os pátios das igrejas, amedrontando constantemente aqueles a quem não tinha ainda atacado, estampando nas faces das criaturas as medonhas marcas de seu poder..."
Varíola. Quantas pessoas sabem o que é? Não muitas, e com a passagem do tempo cada vez menos: a doença foi erradicada.
Não existe mais. A visão dos rostos e dos corpos deformados, cheios de pústulas, só pode ser encontrada em fotos.
E, no entanto, os antigos chineses não davam nome a um recém-nascido enquanto não fosse acometido de varíola e sobrevivesse: só assim a criança poderia de fato ser contada entre os vivos.
E não era difícil contrair a enfermidade. Desde a antiguidade, as epidemias se sucediam, propagando-se com rapidez e deixando em sua passagem um rastro de terror.
Nas Américas, para onde a doença foi trazida por espanhóis e portugueses, a devastação não foi menor. A conquista do Peru por Pizarro foi grandemente facilitada por uma epidemia de varíola que matou cerca de 200 mil dos 6 milhões de habitantes -incluindo o imperador inca e seu herdeiro.
No Brasil, um meio seguro de liquidar índios era deixar, em suas trilhas, roupas de variolosos.
Primeiro remédio
Desde há muito sabia-se que a varíola deixava, além das marcas deformadoras, imunidade duradoura. Como conferir tal imunidade aos sadios? Muitas tentativas foram feitas neste sentido.
A mais conhecida consistia em inocular as pessoas com líquido das pústulas ou com crostas das lesões em cicatrização, preferentemente retirados de pacientes com "varíola minor", ou alastrim, variedade mais benigna da doença. Era a variolização, um método não isento de riscos: às vezes resultava até em morte, mas esta era bem menos frequente que nos casos de varíola propriamente dita.
A variolização era muito comum no Oriente. De Constantinopla, ela foi levada, em 1721, para a Inglaterra por lady Mary Wortley Montagu. Lady Montagu era uma figura proeminente da sociedade londrina e hábil divulgadora do método, que foi primeiro aplicado em sua própria filha.
Não tardou a conseguir amplo apoio de figuras conhecidas, Voltaire entre elas.
No Brasil, a variolização foi introduzida por sacerdotes em 1728. Apesar disso, as epidemias continuavam fazendo vítimas.
Varíola de vaca
As coisas estavam nesse pé quando entrou em cena um médico inglês chamado Edward Jenner. Nascido em Berkeley, no interior da Inglaterra, em 1749, Jenner mostrou uma precoce vocação para a medicina: aos 13 anos já estava ajudando um cirurgião em Bristol.
Fez seus estudos médicos em Londres, onde tornou-se discípulo do famoso John Hunter, grande clínico e um homem dotado de uma insaciável curiosidade científica. À época, discutia-se se sífilis e gonorréia eram duas doenças diferentes ou uma doença só. Para esclarecer a dúvida, Hunter inoculou-se com a secreção de um doente portador de gonorréia. Infelizmente, o paciente tinha sífilis também, de modo que Hunter, além de contrair as duas doenças, não conseguiu dar resposta à questão.
Voltando a Berkeley, Jenner tornou-se médico do interior. Conversando com uma camponesa (pelo menos é o que diz a lenda), ele obteve a informação que revolucionaria a prevenção da varíola.
Nas palavras de Jenner: "Encontrei pessoas que tinham tido uma doença por eles chamada 'cow pox' (a vacínia ou varíola do gado, em inglês, causada por um vírus diferente do da varíola), contraída pela ordenha de vacas com as peculiares lesões desta enfermidade.
Esta doença é conhecida dos ordenhadores desde tempos imemoriais, e há uma vaga opinião de que evita a varíola."
Outro talvez desprezasse a "vaga opinião". Não Jenner. Durante 20 anos, ele ficou pensando no assunto. Finalmente, encorajado por John Hunter, para quem era necessário experimentar sempre, deu o passo decisivo: a 14 de maio de 1796, inoculou o menino James Phipps, de oito anos, com líquido extraído das lesões de vacínia de uma jovem chamada Sarah Nelmes. E a prova veio tranquilizar o ansioso Jenner: inoculado meses depois com líquido de pústulas variolosas, o menino Phipps revelou-se imune à doença.
Descoberta sensacional, certo? Recebida com aplauso unânime, certo? Errado. Os médicos ingleses não deram a mínima para a vacina.
E quando finalmente resolveram aplicá-la, só o faziam em consultório privado e cobrando bom dinheiro -com o que a doença continuava matando os pobres.
Como muitas vezes acontece, uma guerra veio demonstrar o valor do procedimento; no caso, o conflito franco-prussiano (1870-71). Entre os prussianos, vacinados compulsoriamente, morreram, de varíola, 297 soldados. Entre os franceses, não-vacinados, os óbitos chegaram a 34 mil.
Havia objeções não médicas. Muitos religiosos achavam (a semelhança com a situação da Aids é notável) que a varíola era um castigo divino no qual não se deveria interferir. Também não faltava quem achasse a vacinação obrigatória uma violação da liberdade individual. E havia também histórias fantásticas: quem se vacinava, ficava com cara de bezerro.
Revolta no Brasil
No Brasil, a resistência contra a vacinação obrigatória assumiu o caráter de rebelião: foi a Revolta da Vacina (1904). Nomeado diretor de Saúde Pública no governo de Rodrigues Alves (1902-06), Oswaldo Cruz recebeu plenos poderes para sanear o Rio de Janeiro.
O objetivo era proteger a saúde da população, mas atrás dele havia também o interesse econômico: por causa das pestilências que grassavam o país, navios estrangeiros se recusavam a aportar no Rio. O café não era exportado, divisas não entravam, a enorme dívida externa não podia ser paga.
Era uma tarefa imensa a de Oswaldo Cruz, mas ele a enfrentou com muita competência e não menor autoritarismo, organizando campanhas em moldes militares.
Enquanto se tratou de matar mosquitos ou de caçar os ratos que albergavam as pulgas transmissoras da peste, as pessoas achavam graça. Mas quando os vacinadores começaram a entrar nas casas para vacinar moças e senhoras nos braços e coxas, o protesto eclodiu.
Uma aguerrida oposição que, de forma esdrúxula, abrangia desde monarquistas e positivistas até professores de ensino superior, anarquistas e socialistas, organizou-se de imediato e culminou com a revolta, um equivalente carioca da Comuna de Paris, com barricadas e tudo.
Oswaldo Cruz não era hábil, mas do ponto de vista científico estava certo. Em 1966, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu liquidar a varíola por meio de uma vacinação em massa, universal.
O raciocínio era simples: como o vírus só vive em seres humanos, se um número suficiente de pessoas fossem imunizadas, a cadeia de transmissão seria interrompida para sempre. Foi o que aconteceu: o último caso de varíola foi registrado na Somália, em 1977. Em 1980, a OMS declarava a varíola erradicada. Uma longa jornada, que tinha começado quando Edward Jenner ousou desafiar a velha dama indigna que há milênios acompanhava a humanidade.

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