São Paulo, quinta-feira, 6 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um brasilianista na presidência

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Brasileiro não pode mesmo viajar. Assim que põe os pés fora do país, parece que é tomado por uma compulsão de dizer e escrever as coisas mais esquisitas.
Tivemos mais uma confirmação dessa verdade eterna com a cobertura que grande parte da imprensa deu à viagem do presidente da República à França.
Jornalistas que acompanhavam a comitiva enviaram reportagens que oscilavam entre a bajulação descarada e a tolice pura e simples.
Um dos mais importantes jornais do Brasil chegou ao extremo de publicar, em letras garrafais, que o presidente da França desejava "acelerar o ingresso" do Brasil no Grupo dos Sete!
Ora, ora. Boris Ieltsin, com seu arsenal atômico que a todos preocupa, vem tentando há bastante tempo ingressar nesse clube, mas só é admitido em algumas reuniões e, mesmo assim, como observador. O diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional também só participa do G-7 na qualidade de observador...
O próprio Fernando Henrique Cardoso andou se esforçando para enriquecer a dimensão folclórica da viagem.
Reunido com sábios franceses para discutir a globalização, o presidente resolveu contar um caso. Relatou que, em visita à casa de uma família pobre em Iracema, no interior do Ceará, foi indagado sobre a sua reeleição. Este é, segundo ele, "um exemplo de mundialização"!
O exemplo é, obviamente, muito mais revelador das preocupações subjetivas do presidente do que do avanço da globalização pelo interior do Ceará. Nessas paragens, a "globalização" relevante é a de uma certa rede de televisão nacional.
Para deleite dos intelectuais franceses, Fernando Henrique acrescentou considerações sobre a psicologia brasileira.
Nós, brasileiros, temos uma "certa plasticidade mental; somos isso, mas somos também o contrário", disse ele, emendando que, "como vêem, continuo a ser muito dialético."
Vejam vocês as vicissitudes a que ficam submetidos os conceitos filosóficos na periferia! O que parece ser uma referência a uma vertente da filosofia alemã talvez seja, no fundo, um sintoma da força da nossa herança lusitana.
Fernando Pessoa escreveu certa vez que uma das características do estado mental português era a incapacidade de gerar idéias próprias.
Diante de duas doutrinas opostas, o português médio sabia escolher, mas não contrapor a ambas uma terceira, que fosse própria. Se escolhia uma opinião média entre os opostos, isso não representava um cuidado crítico, mas apenas "uma hesitação mental".
O proverbial "murismo" dos tucanos pode ter raízes mais fundas do que geralmente se imagina.
Embora dignificado com termos importados da tradição hegeliana e marxista, constitui, na verdade, um legado dos nossos antepassados.
Assim caracterizada, a "dialética" presidencial perde em charme cosmopolita, mas ganha indubitavelmente em cor local e solidez histórica.
Naturalmente, um chefe de Estado não pode limitar-se a divagações filosóficas. Durante a viagem, FHC também tratou de temas prosaicos. Previu aumento do desemprego no Brasil em 1996 e ressaltou que os nossos juros são "escorchantes".
Em alguns momentos, parecia um brasilianista francês que desembarca por aqui de vez em quando, mas não tem, evidentemente, responsabilidade pelo que acontece.
No final das contas, tudo acaba sendo debitado às inexorabilidades da globalização, um dos mais convenientes biombos ao alcance dos governantes modernos.
Mas não vamos exagerar na crítica. Afinal, é duro participar da globalização no bloco do eu sozinho.
Quem sabe não seria o caso de iniciar uma mobilização para criar um novo agrupamento internacional? Digamos, o Grupo dos Noves Fora, que poderia ser integrado por líderes como Carlos Menem, Ernesto Zedillo, Violeta Chamorro, Boris Ieltsin, Alberto Fujimori e mais alguns outros empenhados em aplicar, "duela a quien duela", as recomendações do G-7.

Texto Anterior: Em renegociação; Com suspense; Limpeza provisória; Troca de comando; Vermelho a bordo; Em alta; Retorno liberado; Fato relevante; Olho no mercado; Silêncio caro; Acusação grave; Em juízo; Dever de casa; Namoro sindical; Dívida a alongar; Agora vai
Próximo Texto: Os deputados e o nosso dinheiro
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.