São Paulo, quinta-feira, 6 de junho de 1996
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Máquina do tempo

OTAVIO FRIAS FILHO

O discurso do ministro Antonio Kandir e sua posse no cargo formam uma espécie de elo perdido na arqueologia política recente, juntando o que parecia separado por léguas de distância, a saber, o governo Collor, soterrado no esquecimento como se fosse um acidente remoto, e o governo atual. Passado e futuro deram-se as mãos anteontem.
Parece que faz um século: o presidente frenético e jubilante, como um Napoleão civil, secundado pela czarina da economia, como era chamada a ministra Zélia, secundada, por sua vez, por este mesmo Kandir, aliás petista até a antevéspera. Eram tempos heróicos, era um governo de improvisadores, de arrivistas e de petulantes.
O que faz um intelectual que ocupou um cargo alto o bastante para ser considerado político, após escapar ileso de um naufrágio como o do impeachment? Espera a onda passar e vem a público admitir seus erros, antes de voltar à ativa? Kandir, não. Para ele, é como se nada tivesse acontecido ou como se o acontecido não fosse com ele.
Aí está ele de volta, agora a bordo de um governo de respeitáveis, de "complexos", como quer o chefe, tratado no discurso do ministro debutante com bajulação só comparável à arrogância dispensada aos outros, os mortais, muitos deles, indivíduos e empresas, literalmente à beira da morte em decorrência da "política social" do governo.
E, pensando bem, que autocrítica haveria a fazer? As idéias e as propostas são as mesmas; o estilo, embora agora mais composto e salpicado de homenagens protocolares à democracia, ao Congresso etc., é o do "entusiasmo", das repetições enfáticas, das frases com ponto de exclamação, ou seja, o estilo só mudou para ficar igual.
Autocrítica cabe aos outros, aos que tardaram, tergiversando na busca vã da pedra filosofal capaz de conciliar as idéias "velhas" com as "novas". A unidade ideológica do mundo não admite compromisso exceto com o sucesso mais vulgar e manda idealistas, filósofos, pessimistas, céticos igualmente para a cesta de lixo.
Daí os Gorbatchov, os Deng Xiaoping, os Menem, parteiros de uma revolução inevitável, como as antigas, mas de trás para a frente, numa direção -esta, sim- sem opções, sem diferenças, sem qualquer originalidade. Num âmbito mais modesto, Kandir foi a cabeça-de-ponte do PSDB no mundo collorido, ou o contrário, dá na mesma: faz jus ao prêmio.
O mérito da posse foi mostrar que, sob as ondulações encantadas da política, enquanto falamos em moralidade, em Itamar Franco, em leis e discursos -enfim, nessa infinidade de desimportâncias que fazem um dia após o outro, no subterrâneo da história há um fluxo oculto, brutalmente lógico, que arrasta a tudo e a todos.

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