São Paulo, domingo, 9 de junho de 1996
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Divergências acerca do teatro épico

SÁBATO MAGALDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando, em razão da queda do Muro de Berlim e do malogro da União Soviética, os afoitos pensaram que perdeu o sentido ler e encenar Brecht, o aparecimento de "A Hora do Teatro Épico no Brasil" merece ser saudado com a lucidez e os elogios do prefácio de Roberto Schwarz. É importante rastrear uma corrente que trouxe frutos decisivos para a consolidação do nosso teatro moderno.
Sob o prisma da dramaturgia, o livro de Iná Camargo Costa analisa especialmente, no primeiro capítulo, denominado "Rumo a um Teatro Não-Dramático", "Eles Não Usam Black-Tie", de Gianfrancesco Guarnieri; e "A Alma Boa de Setsuan", de Brecht, por ser a primeira montagem significativa do autor alemão entre nós, tendo ele formulado a teoria do teatro épico. O capítulo "Na Hora do Teatro Épico" trata de "Revolução na América do Sul", de Augusto Boal; e "A Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar", e "Os Azeredo mais os Benevides", de Oduvaldo Vianna Filho. "A Força de Inércia do Teatro Épico" examina o "Show Opinião", assinado por Armando Costa, Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna Filho; e "Arena Conta Zumbi", de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. O último capítulo -"Adeus às Armas"- contempla "Arena Conta Tiradentes", também de Boal e Guarnieri; "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade; e "Roda Viva", de Chico Buarque. Pelos títulos dos capítulos, pode-se acompanhar o itinerário traçado pela autora para definir o nascimento e a alegada diluição de uma tendência.
Para quem, como eu, diverge em grande parte da classificação e dos juízos de Iná Camargo Costa, embora lhe reconheça a agudeza de muitas observações, não é fácil comentar o volume. Argumentar de forma convincente contra conceitos polêmicos, dos quais se discorda, exigiria quase o mesmo espaço por ela utilizado, com o objetivo de discuti-los. Um artigo de jornal indicará, na melhor das hipóteses, os temas passíveis de contestação.
Caberia afirmar que um assunto seja épico ou dramático? Não vejo por que a greve deva ser julgada, em si, tema épico. O tratamento é que pode ter uma ou outra forma e Gianfrancesco Guarnieri, que em 1958 estava familiarizado com o drama e não com o teatro épico, escolheria forçosamente o primeiro, que dominava. As falhas se creditam mais ao dramaturgo imaturo, que estreava com "Eles Não Usam Black-Tie". E as restrições que se lhe imputam não empanam seu admirável significado histórico. Nada decreta que o drama seja conservador, e ele poderá abrigar conteúdo progressista ou não.
Iná alude a "cotação zero de Brecht entre nós até o final dos anos 50", explicando-a melhor, talvez, "por nossa dependência em relação ao teatro francês". Não creio ser aceitável essa afirmação, porque em 1956, ano da morte do dramaturgo, já tinha sido possível assinalar que, "ao menos para um círculo de críticos e espectadores", seu teatro situava-se "como o mais representativo do nosso tempo". E a montagem de "A Alma Boa de Setsuan" pela Cia. Maria Della Costa-Sandro Polloni, em 1958, a primeira de um conjunto profissional brasileiro, foi saudada como "acontecimento histórico".
Infelizmente, sendo alvo de um mal-entendido da autora, sinto-me obrigado a esclarecer, quanto a "Revolução na América do Sul", que ter mencionado a revista como um de seus estímulos foi de fato um elogio e não "apenas aparente", e que "hoje talvez possa mesmo passar por tal, já que os então vigentes preconceitos contra o teatro de revista parecem superados". Havia não preconceito contra a revista, mas inaceitação do mau teatro de revista, pois aquele considerado bom recebia palavras calorosas.
O capítulo de meu "Panorama do Teatro Brasileiro" não revela indisposição contra a revista de Artur Azevedo: não dei preferência ao seu "teatro sério" -simplesmente não tive acesso a ela, na ocasião, e ao lê-la, anos mais tarde, nos seis volumes da obra cênica, em boa hora publicada pelo governo federal, achei-a da melhor qualidade. Por sinal, Boal também não conhecia a revista do ano de Artur Azevedo, ao elaborar "Revolução na América do Sul".
Depois de fazer boas análises sobretudo de "A Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar", a autora se deixa conduzir por um desígnio de generalização que, perdendo a objetividade, compromete o seu raciocínio. Veja-se, por exemplo, o juízo categórico desta frase: "E, como vimos, para a nossa crítica, o teatro épico é esquemático e maniqueísta por definição". Nada vi que autorizasse Iná a tirar essa conclusão, a respeito de "nossa crítica". Não seria aconselhável que, antes de expender condenação tão peremptória, ela tivesse procedido a amplo levantamento sobre o tema, em toda a imprensa?
Espanta-me que Iná anatematize como "curiosa combinação de paranóia e má-fé" o procedimento de Boal e Guarnieri em "Arena Conta Zumbi", ao empobrecer o "complexo lado palmarino da história". Não me consta que os autores quisessem "identificar" a admirável luta dos negros aos episódios ligados a 1964. O espetáculo procurou utilizar a lição de Palmares, no seu heroísmo, para manter a chama da resistência à ditadura militar. Uma "obra estética e politicamente falsa" nunca teria a capacidade de mobilizar um público tão entusiasta e esclarecido. Naqueles anos sombrios, uma encenação que exaltava a liberdade tinha o dom de revigorar o ânimo de quem se sentia oprimido.
Raciocínio semelhante se aplica a "Arena Conta Tiradentes". Confesso, de início, não ter entendido esta frase: "O Curinga sintetiza o equivocado esquema consagrado pela crítica para explicar a trajetória do Teatro de Arena, incorporando-o ao texto de 'Tiradentes', o mesmo esquema apresentado por Boal em sua teoria do Curinga".
Se bem compreendi a teoria do Curinga, permitindo que uma personagem fosse interpretada por vários atores, e levando, como no jogo de cartas, o Curinga a entrar nesse ou naquele papel, Boal adaptava, para um pequeno elenco fixo, o estranhamento brechtiano. Apenas Tiradentes tinha um só intérprete, porque se concentrava nele a empatia pretendida, e que é característica do teatro dramático, de inspiração realista ou naturalista.
Ainda que eu não compartilhe da crítica dos autores aos demais inconfidentes, reconheço ser "Tiradentes" um texto muito mais elaborado que "Zumbi". E o espetáculo visava a reiterar a luta pela liberdade, sendo ademais dificilmente interditável pela censura, como a maldade de Iná registrou: "Não custa lembrar que Tiradentes sempre foi muito cultuado pelos nossos militares". Na ótica da autora, que procuraria valorizar o contexto histórico, o que parece faltar é exatamente a sensibilidade para apreender essas montagens nas circunstâncias em que foram apresentadas.
As colocações discutíveis prosseguem no estudo sobre o Teatro Oficina. Menciona a autora o atraso desse conjunto em relação ao Arena. Ora, o Oficina iniciou suas atividades anos depois do Arena, e por isso se entende que ele refizesse sua trajetória, a partir do aprendizado. Mas ninguém contestará que o Oficina realizou, com "Pequenos Burgueses", de Górki, o melhor espetáculo stanislavskiano do teatro brasileiro.
Com o empenho um tanto alucinado de atualizar-se permanentemente, o Oficina retomou, na década de 60, todos os caminhos do teatro moderno, desde fins do século passado. Enfrentou o teatro épico, descobriu o tropicalismo e, incansável na pesquisa, valeu-se de "Na Selva das Cidades", peça do jovem Brecht, para experimentar as pesquisas de Grotóvski. Na conceituação dessa caminhada rica será necessário rever diversas posições assumidas por "A Hora do Teatro Épico".
A primeira delas refere-se a "Os Inimigos", de Górki. Ninguém ignora que se trata de uma peça realista, cuja encenação óbvia reclamaria o estilo stanislavskiano. Entretanto, o diretor José Celso Martinez Corrêa recusou dar ao espetáculo essa linha, imprimindo-lhe uma leitura épica. Essa opção patenteou-se no visual concebido por Flávio Império, que sublinhava o efeito de estranhamento. Assim, é estapafúrdio escrever que estava em jogo uma "folha de serviços prestados à causa cultural stalinista", não obstante a origem do texto. Se o espetáculo merece reparo é na impossibilidade de casamento entre as duas linguagens.
Outras colocações discutíveis se estendem ao estudo de "O Rei da Vela". Por mais que haja um esquema analítico marxista na condução da trama e das personagens, algo mais forte no temperamento de Oswald de Andrade -o seu espírito profundamente anarquista- trouxe ao primeiro plano o propósito de "espinafração", uma espécie de arma giratória voltada contra todos.
Ao invés de ser "desnecessária e inglória" a morte do protagonista, ela tinha o propósito de mostrar a traição do "socialista" Abelardo 2º (os comunistas acreditavam, na época, serem os socialistas seus inimigos e aliados da burguesia) e que, no capitalismo, os sentimentos não contam, e substituir um Abelardo por outro não importa em nenhuma diferença, porque Heloísa, ironicamente, sempre lhe pertencerá. Lembre-se ainda que, se "O Rei da Vela" pode enquadrar-se no "teatro de câmara", rejeitado teoricamente por Oswald (a peça foi ao menos iniciada em 1933, datando a edição em livro de 1937), "O Homem e o Cavalo", publicada em 1934, pertence sem dúvida ao seu conceito de "teatro de massas".
Uma última divergência diz respeito ao papel atribuído a "Roda Viva", de Chico Buarque, estréia de 1968. A autora exagerou no radicalismo, ao afirmar que não haveria "outro modo reconhecido de 'ser artista' no sistema de mercado", por ser a idéia do texto a de "contar a velha (desde Fausto) história do artista que 'se vende'".
O diretor José Celso alterou, de fato, a delicadeza do diálogo, transformando todo o espetáculo em agressão, desde os palavrões alinhados gratuitamente até o elenco se sentar no colo do público e o desfile de signos provocativos para o sexo. Sinceramente, ressalvado o talento dos intérpretes, o conjunto me parecia uma algazarra de adolescentes mal-educados.
Concluir que "Roda Viva" "abriu o caminho para o teatro de vanguarda no Brasil" chega a causar espanto, sendo estranhável, também, a não ser na cronologia, mencionar que se seguem à montagem "Cemitério de Automóveis" e "O Balcão". O próprio José Celso dirigiu em 1968 e 1969, respectivamente, "Galileu Galilei" e "Na Selva das Cidades", de Brecht, duas das mais extraordinárias realizações do nosso teatro. E não se pode esquecer: aquilo que a autora chama reinstalar "a cena brasileira no descampado da ideologia burguesa" valeu a José Celso o exílio, como se tinha exilado também Augusto Boal.
Livro discutível, assim, "A Hora do Teatro Épico no Brasil", que os interessados no destino do nosso palco vão por certo debater.

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