São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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NA PONTA DA LÍNGUA

MARCELO LEITE

Tremo na base toda vez que minha filha mais nova pergunta pela regra que mandou escrever tal palavra com "z" ou com "s". Não consigo lembrar nem se aprendi a escrevê-las corretamente com ou sem as respectivas regras e suas exceções, ou se foi na base do "decoreba", mesmo. Mas dificilmente escreveria "para traz" (em lugar de "para trás"), como saiu na pág. 3-12 de segunda-feira passada.
Os métodos pedagógicos do sisudo Liceu Pasteur de São Paulo podiam não ser lá muito modernos, mas eram eficientes. Conseguiram fazer da ortografia algo quase intuitivo, como devem ser as coisas da língua para que esta não se torne um fardo.
Um fardo como é para a maioria dos jornalistas, que o carregam sobre as costas do leitor.
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É mais prudente ter a língua como amiga, mas para mantê-la assim recomenda-se não tomar certas liberdades. Dada sua natureza feminina, costuma vingar-se com uma arma cruel, a do ridículo. Emprega-a quando se a ousadia se excede em temeridade, por exemplo na produção de neologismos.
Assim como às vezes fabricam notícias, jornais acreditam que têm licença para criar palavras. Até ombudsmans se permitem tais liberdades. Recentemente, a Folha concebeu um par monstruoso: "agrodeputados", "agroparlamentares". Ainda não deu à luz "agro-senadores" -ou serão "agrossenadores"? Queria com isso fazer com que coubessem, em títulos cada vez menos generosos, os representantes da perdulária bancada rural. Não vai pegar. Não vai pegar.
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Quando havia revisores nos jornais, corria entre eles uma lenda, a do "almirante-de-esquerda". Rezava a anedota que um desses profissionais deixara passar num jornalão paulista esse hilariante "pastel" (erro de digitação). Como eram tempos bicudos de domínio militar, a metamorfose politicamente incorreta do almirante-de-esquadra resultou na demissão do desatento.
Lembrei-me dessa história quando vi na Folha, há nove dias, uma dessas trocas de letras que acabam fazendo sentido. Foi numa reportagem da pág. 4-3 (em 7/6), sobre seriados da Internet, na qual se falava de "soup-operas". Não pude deixar de rir.
O termo correto em inglês é "soap-operas" ("soap" quer dizer sabão), nome dado às telenovelas dos Estados Unidos (não pergunte por quê). Mais que um "pastel", o redator cometeu um verdadeiro ato falho. Ao trocar "a" por "u" alguns de seus neurônios deviam estar ligados na tradução de "soup" para o português, por sinal um anagrama de "soap".
Não adivinhou? É sopa. Quem não matar a charada merece lamber sabão.

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