São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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A histeria da criatividade

LUIS S. KRAUSZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Thomas Mann foi um dos poucos escritores capazes de levar a descrição à transcendência. Não é à toa que seus familiares o chamavam de "Zauberer", mago. Aquilo que era capturado por sua pena revestia-se de uma aura mágica e em sua poética o enredo funcionava como uma espécie de suporte para este dom, como uma tela que sustenta as pinceladas de um mestre consumado.
Seu filho Klaus, que cresceu à sombra de dois gigantes -os irmãos Thomas e Heinrich Mann- buscou, desesperadamente, um desabrochar literário, mas não conseguiu criar (ou descobrir) um estilo próprio. Talvez por isto nunca tenha conseguido (apesar do sobrenome) tornar-se um grande escritor.
Sua perseguição frenética por originalidade e individualidade o levou a percorrer uma trajetória perturbada, inquieta. Sempre procurando algo, dividindo-se em múltiplas atividades, pereceu vítima da toxicomania -uma armadilha no caminho deste homem em busca de si mesmo.
Talvez por encontrar em Tchaikovsky um paralelo a esta sua permanente sensação de deslocamento e a este seu anseio quase histérico por criatividade, escolheu biografá-lo em "Sinfonia Patética", aqui lançado há alguns anos numa fluente tradução assinada por Betty Kunz.
Klaus Mann, assim como sua família, de vocação democrática e humanista, foi obrigado a deixar a Alemanha em 1933, exilando-se primeiro na França, depois nos EUA. Seus vários romances sempre foram fortemente influenciados por traços autobiográficos -como "Mephisto", transformado em filme por Istvan Szábo, e que conta a história de seu cunhado, o ator Gustav Grundgens.
"Fuga Para o Norte" baseia-se, igualmente, em elementos da trajetória do autor. Descreve a vida de uma alemã -Johanna- subitamente obrigada a fugir da Alemanha para a Finlândia, em razão de suas atividades antinazistas, ao mesmo tempo em que trata de sua relação homossexual com Karin. O livro passa-se no interior de uma Finlândia de antes da guerra, deliciosamente primitiva, cuja paisagem e vida Klaus descreve com algum capricho, embora sem conseguir torná-las transcendentais como, por exemplo, as paisagens dos arredores de Davos retratadas na "Montanha Mágica" do "Zauberer". Pode-se ver aqui o filho esforçando-se em emular o pai, com quem sempre teve uma relação marcada pela ambivalência.
O livro, apesar disto, tem seu encanto e interesse. No entanto, não se pode dizer o mesmo da tradução. Que dizer de um tradutor que não consegue distinguir as diferentes nuanças do verbo "Sein", que ora pode significar ser, estar, ter ou ficar? Suas frases muitas vezes parecem parodiar o português tosco de um imigrante alemão recém-chegado ao Brasil -como, por exemplo, em "o hotel estava numa grande praça empoeirada" (pág. 56). Para não falar de parágrafos inteiros cujo significado permanece inteiramente opaco, de uma sintaxe que ignora subjuntivos e imperativos, ou de um vocabulário que chega ao cúmulo de falar do "tráfico" de automóveis (pág. 37) nas ruas de uma cidade. Ou de plácidos tipos nórdicos que se sentam "na mesa" em restaurantes no interior da Finlândia. Ou de traduzir "Villa", mansão, por "vila". Não há página sem alguma atrocidade deste calibre, o que virtualmente inutiliza o volume.
Para usar palavras do próprio tradutor, o livro transformou-se numa agitada e atropelada confusão. Conseguiu transformar um texto mediano num amontoado de palavras virtualmente indecifráveis.

Luis Krausz é mestre em letras clássicas pela Universidade da Pensilvânia e pós-graduado pela Universidade de Zurique.

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