São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma poética de cores vivas

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Firme estréia literária faz Lucius de Mello, 32, paulista de Bariri, com os oito contos de seu livro "Um Violino para os Gatos". Além de dominar claramente a arte de escrever de modo sintético, essencial ao conto, cria imagens marcantes dos personagens e de seu ambiente, que se fixam mesmo, com força, na cabeça do leitor.
Para isso, certamente contou sua experiência como repórter de televisão, na medida em que os enredos parecem exibidos, mais do que pelo encadeamento de palavras, por uma sucessão de imagens bem editadas, de um colorido vigoroso e detalhista.
Não se fala, aqui, das câmeras da Globo ou do SBT, é óbvio, mas de uma ótica própria, cujo mérito maior é justamente o de escarafunchar os meandros da criação literária utilizando elementos de uma outra mídia, por assim dizer. Não, porém, do modo que já nos habituamos a ver (perdão, a ler) em outros autores jovens que, aqui e internacionalmente, escrevem muitas vezes como se estivessem falando, com um microfone à mão.
O que Mello faz é fundamentalmente criar imagens poéticas em cores vivas, mesmo usando na maioria dos textos, como de fato ocorre, uma construção sintática próxima do "tradicional". Combinando tais imagens com um lirismo seco, contido, mas expressivo, e uma construção narrativa bastante hábil, que sabe reservar surpresas a todo momento, até a última linha, só poderia ter dado no que deu: um belo livro.
"Pedra Azul", o segundo conto, em que uma moça interiorana remói até o limite da morte as suas angústias de filha adotiva, enquanto um bando de azulões faz e refaz seu trajeto rotineiro sobre um milharal, aproxima-se, sem exagero, de uma pequena obra-prima.
Leia este trecho, ainda do início do conto: "Sentada na cadeira, usando um vestido de algodão branco, com os pés descalços sobre os chinelos, Maria Pedra descasca laranjas. O facão está muito bem amolado, com o corte no ponto. A moça, que sangrou com 13 anos, tem uma panela apoiada entre as coxas grossas e virgens. Ali ela guarda o que depois vai virar um doce melado". É um atraente convite, de cara, à imaginação do leitor.
Em sete dos contos, Mello inclui animais (a maioria, insetos) que atuam como verdadeiros personagens, ainda que fugazmente. São as moscas que acompanham a cabeça decepada de um homem ("Em nome do Padre, da Galinha e da Cozinheira"), os pernilongos que quase se afogam em gotas de suor ("Ovos com Maçãs"), ou as baratas que invadem o corpo de um rapaz ("O Moço que Engoliu a Barata").
É uma característica, sim, mas, ao contrário do que afirma o próprio autor no "release" da editora, felizmente não é isso que dá unidade ao livro. Na verdade, os animais são interessantes coadjuvantes, nada mais. Algo maior foi construído por Mello, independentemente desse fio tênue, e sua base está nos recursos de estrutura expostos no início desta resenha.
Pontos menos felizes do livro, é preciso registrar, aparecem em "A Borboleta e o Ditador" e "Tapete em Retalhos de Fogo". No primeiro, Lucius de Mello deixa transparecer sua admiração pelo realismo mágico de Gabriel García Márquez e, em vez de compor um conto de características originais, acaba por praticar um (bem-feito) exercício de recriação do universo literário típico do célebre best seller colombiano. O título já diz tudo.
No segundo, o enredo fica um tanto obscuro à medida que se aproxima o desenlace, e a linguagem -aqui sim quase mera transposição sintática de um movimento de câmeras- mais atrapalha do que ajuda. Nesse caso, a aparição de abelhas ou formigas no desenrolar da trama não resolveu o problema -nem poderia, logicamente, fazê-lo.

Texto Anterior: A histeria da criatividade
Próximo Texto: LITERATURA; FILOSOFIA; ENSAIO; BIOGRAFIA; ESTUDOS LITERÁRIOS; POESIA; PSICANÁLISE
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.