São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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Apologias do mundo antes da queda

LEONARDO FRÓES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nascida em 1888 na Nova Zelândia, sua ilha de beleza, e formada como escritora em Londres, Katherine Mansfield morreu de tuberculose aos 34 anos, em janeiro de 1923, após tentar uma última e controvertida cura com Gurdjieff, guru de numerosos artistas. Os escritos íntimos que dela ficaram, parte dos quais compõem "Diário e Cartas", são o relato de uma alma em preparo para a morte feliz.
O último de seus belos contos, "The Canary", data de julho de 1922, quando escrever já se tornara para ela, segundo testemunhou seu marido e inseparável companheiro de letras, o crítico John Middleton Murry, "uma luta quase impossível, não só contra a doença, mas também contra a convicção de que um trabalho de purificação tinha de ser levado a efeito antes de ela dar novos passos".
Nas anotações do diário, em que sua suave lucidez celebraria até o fim "o milagre de estar viva", Katherine confirma que sua realização como escritora não se lhe apresentava somente como um problema técnico, a ser resolvido pelo domínio da escrita. É preciso construir-se como pessoa, diz em síntese sua maneira de ver, para que a obra se organize em decorrência disto, surgindo como a documentação factível, natural e espontânea das experiências do espírito, e não como um relato frívolo. "Céus! Como é difícil a gente se soltar -soltar as amarras e mergulhar no azul. E, ainda assim, uma vida criativa depende disto, e não se deseja outra coisa", anotou em 7 de novembro de 1920.
É na soltura no azul que percebemos, segundo os raciocínios de Katherine, que a construção de uma pessoa começa pela desconstrução dos seus personagens. Numa carta de 1917, ela recomenda ao marido que "tire a máscara", mas não "antes de estar certo de que há outra por baixo, tão terrível quanto a primeira, sem deixar no entanto de ser sempre uma máscara." No diário, em fevereiro de 1920, após a vivência de um momento poético na contemplação das ondas do mar -um "momento de suspensão" em que "somos arremessados para fora da vida"- ela toma consciência de uma imensa caverna em que seus múltiplos egos "murmuravam, indiferentes e íntimos," comparando-os a "velhos catadores de algas". Dois meses mais tarde, ao discutir as possibilidades de ser fiel a si mesma, volta ao assunto e se indaga ante a constelação dos papéis: "Verdadeira comigo? Com qual dos meus egos?"
A fragilidade a que a doença a expôs, levando-a a frequentes viagens entre a Inglaterra e a França durante a Primeira Guerra, em busca de um melhor clima e de paz de espírito, parece ter dado a Katherine, em contrapartida, uma força de reflexão incomum sobre o destino humano.
Ela se encanta com tudo que a rodeia. Tira, dos menores incidentes do dia, as lições mais úteis. Anota minuciosamente alguns sonhos, decidida a se ver com distanciamento e coragem nos espelhos da mente. Quando pensa em seus atos, mostra grande rigor ao perseguir seus motivos, e o mesmo olhar de despedida que lança às coisas em torno é posto com suprema atenção em seu trabalho mais duro: assistir dia-a-dia, meditando e escrevendo alguma coisa a respeito, à lenta decomposição da personalidade que, em partes tão imponderáveis, foi herdada e criada entre as circunstâncias.
Era preciso sua vocação de grandeza e sua intimidade com as questões fictícias para lidar com as "centenas de egos" que ela é forçada a hospedar nos seus limites: "Além das repressões e complexos, e reações e vibrações e reflexões, há momentos em que eu sinto não ser nada mais do que um funcionariozinho qualquer de um hotel sem dono, cuja tarefa se reduz a registrar a entrada dos hóspedes e entregar-lhes as chaves".
O desmonte da ficção dos egos é o que permite a Katherine dar o "salto divino para dentro da linha divisória das coisas", expressão de uma carta à pintora Dorothy Brett, em 11 de outubro de 1917, antecedida de um exemplo concreto de como ela se transforma nas coisas, pela contemplação sem barreiras, para depois as recriar pela escrita: "Quando escrevo sobre patos, juro que eu sou um pato".
É de raro quilate a sensibilidade com a qual ela observa a presença de outros seres, outros objetos -vespas, borboletas, paisagens-, nos quais, livre dos seus entraves pessoais, podia entrar à vontade. A paixão pela natureza vem-lhe da paixão pela ilha em que nasceu e cultua, porque foi ela que a impregnou de beleza, dormindo à noite no mar para amanhecer enfeitada. E a indagação que lhe vem com grande espanto, em 13 de novembro de 1918, tendo em vista a facilidade com que transita entre as coisas, é por que as pessoas "não voam umas para as outras, não se beijam, choram, partilham tudo? Por que as pessoas se escondem, recuam e têm suspeitas a respeito de tudo?" Segundo a meiga e firme Katherine, que entrava em borboletas e vespas e entrou sorrindo na morte, "é por falta de coração, uma espécie de peste que nunca as deixa florir".
Nesta edição cronológica de fragmentos do "Diário e Cartas", a tradutora e organizadora, Julieta Cupertino, intercalou discretas notas que dão continuidade ao todo e transformam seu volume, pela boa escolha dos trechos, numa sintética e perfeita autobiografia da autora. Por ele assim passam também seus amigos, como D.H. Lawrence ou Virginia Woolf, expostos às vezes a duras críticas, e há cenas da vida literária inglesa que são lampejos de um mosaico sobre a fértil época em Londres.
Dados interessantes sem dúvida, mas que não se comparam à importância do livro como um relato da alma -ou um belíssimo manual de auto-ajuda para a quebra dos egos. A cada página, de fato, Katherine dá um conselho a si mesma que sempre parece válido para o conjunto da espécie. Seus recados, porém, são muitas vezes cifrados. Um dos mais interessantes, já à beira da morte, em 17 de outubro de 1922, é este: "Ser loucamente entusiasmado ou mortalmente sério -as duas coisas estão erradas. Ambas passam. Deve-se ter sempre presente o senso de humor. Depende inteiramente de você o quanto vê, ou ouve, ou compreende. Mas tenho encontrado senso de humor em cada ocasião de minha vida. Agora você talvez possa compreender o que significa ser 'indiferente'. É aprender a não se importar, e não revelar sua mente".

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