São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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Cartografia de uma sensibilidade

ARNALDO FRANCO JUNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "Clarice Lispector - O Tesouro de Minha Cidade", Ana Miranda abole os limites entre ficção e realidade para recriar uma Clarice ligada ao Rio de Janeiro.
Incorporando elementos dos textos de Lispector, Ana realiza um exercício de estilo em que a ficção de Clarice serve à construção imaginária de uma Clarice real.
Na cena inicial, Clarice observa o Rio à noite, do alto de seu prédio, e joga a ponta de seu cigarro na cidade. Esse frágil lume em queda permanente é uma primeira metáfora da personagem central, Clarice, a que ilumina detalhes de uma cidade, uma alma, a alma oculta de uma cidade.
Jogando com a polaridade observador-observado, a autora passa do "Rio como amplidão" à "cidade dentro de Clarice", seu alvo. Nos melhores momentos, flagra tanto a vida da escritora como a vida da cidade, descortinando em uma a alma da outra. Vale-se, para isso, de um processo associativo que vai da geografia exterior à geografia interior.
A cartografia é a metáfora que rege a construção deste livro, que busca apreender uma sensibilidade. Ana faz da sugestão o vetor da revelação de verdades que faíscam, ambíguas, entre a ficção e seu reverso. Implícita, a cartografia diz tudo, mas conserva o mistério.
Na ênfase dada à sugestão poética reside a força e a fragilidade do livro. O perfil exige a cumplicidade do leitor, que pode faltar caso se espere uma biografia com datas e informações bombásticas.
Há, porém, limites na Clarice recriada por Ana Miranda. De algum modo, ela se imaterializa, ainda que realize atos banais como andar pelo Rio, fumar, tomar café, dormir. Ela surge angustiada, solitária, alegre, enlevada, misteriosa, apaixonada, delicada, mas não irônica, colérica, inconformada, cruel -traços que Clarice também tinha. Falta no perfil a faceta transgressiva da mulher que comia beiju e ria alto em feira nordestina, que amava o que "não presta" por saber que "o que presta também não presta".
É evidente que o livro resulta de pesquisa. A criação de uma verdade nascida da função desveladora da realidade atribuída à ficção, o uso da estrutura remissiva de "A Paixão Segundo G.H.", a ponta de cigarro que atravessa a narrativa tal como o violino que percorre "A Hora da Estrela" -tudo isso comprova que o projeto desafiador do livro foi vencido por Ana Miranda.
Secretamente, talvez, este perfil ambiciona ser um quase-romance. A ênfase na associação, que rege o encadeamento de seus "capítulos", e na supressão de mediações explicativas revela fidelidade a Clarice, que não gostava de violar com racionalizações o mistério da "coisa" a ser captada pela escrita.
Deste modo, a cartógrafa vence seu desafio: escreve "alguma coisa como a lembrança de um alto monumento que parece mais alto porque é lembrança". Toca de fato no monumento-Clarice, cria uma verdade sensível, "mais real que a realidade". E quer fascinar o leitor.

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