São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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Uma viagem solitária por paisagens incertas

MARCO LUCCHESI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O romance de Elizabeth Bowen é na maior parte das vezes um romance da solidão. Como se efetivamente desejasse uma história da solidão, assim como Borges desejou uma história da noite. Solidão sem qualquer adjetivação metafísica. Chego mesmo a pensar na solidão viageira de um Evelyn Waugh, imanentíssima, no delicioso e bem-humorado "When the Going Was Good", tanto na Amazônia quanto na Etiópia. E, se o mapa-múndi de "Eva Trout" não abrange a mesma distância, é igualmente solitário e, certamente, bem mais dramático. Uma solidão para a morte. Uma solidão irreversível. Plenamente solidão.
Creio ser este o primeiro livro de Elizabeth Bowen (1899-1973) aqui traduzido. Desejava sugerir a tradução do encantador "Friends and Relations", em que a solidão e o humor contrastam numa clave menos dramática do que em "Eva Trout", que continua sendo o meu romance preferido no conjunto da obra. Impressiona-me seu pacato desespero, sua terrível e doce melancolia, seu permanente e procurado desencontro.
Não chega a ser uma conversão, mas uma dissolução. Tudo isso com elegante sutileza. Penso em "Thérèse", de François Mauriac, ou em "Micol", dos Finzi-Contini. Um rosto sem rosto. Eis o que me impressiona e arrebata. A imprecisão do desenho e o não-retilíneo. O deslocamento e a condensação. O fundo e a superfície.
Temos em "Eva Trout" uma obra que respira livremente. Quase a elegância de um Tennyson. A gravidade parece perder a gravidade. Predomina a leveza de uma sonata de Domenico Scarlatti. Passamos da gravidade à claridade. E, conquanto as grandes linhas do romance de Elizabeth Bowen sejam realmente bem definidas em "Eva Trout", percebemos uma discreta herança pré-rafaelita, em que o detalhe vai assumindo dimensões que ultrapassam a inteligência do todo, sem comprometer a velocidade que o caracteriza.
A herança -como dissemos- permanece discreta, e o diálogo constitui a razão principal de sua mobilidade. Não o diálogo claro e difuso de Stendhal, mas o de um Morgan, menos ensolarado e mais direto. Morgan caminhava na direção do passado. Elizabeth Bowen esforçava-se para o futuro. Tanto "Portrait in a Mirror" como "Eva Trout" percorrem um mundo-em-dissolução, de paisagens relativas e esmaecidas, sem a concretude wildeana, de um outro "Portrait".
Tudo em "Eva Trout" se transforma em acontecido. Tanto Charles Morgan quanto Bowen não conseguem fugir à densidade do passado. Mas só em "Eva" reconhecemos uma obra refinada e inegavelmente mais realizada do que a de um Morgan, a julgar pelo ritmo interno das passagens do romance bowiano.
Um exemplo do que vamos dizendo repousa na atmosfera musical de sua história, difusa e delicada, em que é constante a presença do piano e da espineta, como no quadro de Turner, intitulado "Música no Castelo de East Cowes". Um castelo parecido sentimentalmente e musicalmente com o de Bowen. Vale transcrever a coincidência:
"Este resgate da escuridão era para Eva, que não o testemunhara em nenhum outro lugar, um milagre inseparável do castelo. Sua cama ficava de costas para a janela, mas um espelho ficava à sua frente -nele, podia ver a existência começar novamente. Ver é acreditar: outra vez, depois da perda e separação, depois da mentira maliciosa de seus sonhos ilusórios, nos quais ela não era ninguém, em lugar nenhum, ela sabia estar lá".
Sempre a mesma atmosfera de Turner, largamente imprecisa e bela. Eis o que devemos conservar da breve jornada de sua vida: a imagem incerta do sonho e do espelho. Haverá algo mais, além deste plano de sombras, que possa emprestar maior nitidez e relevo ao mundo de Eva?
O romance nada mais é do que um romance de visitações. De chegadas e partidas. Tudo por encontrar. Tudo por perder. Percebemos uma dolorosa e onipresente ferida no princípio de individuação da personagem bowiana, de cuja cicatriz depende um processo radical de autocura. Mas a dor é infinita, e o mundo parece caminhar -lucrecianamente- para sua própria dissolução. O mundo de Eva deixou o Paraíso. E, por toda a parte, a marca de um exílio crucial.

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