São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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A desforra do mundo político

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um discurso lançou raízes por todo o mundo, o discurso da globalização. Em poucos anos, ele transformou acontecimentos de fato relevantes numa visão de mundo e, mais precisamente, em ideologia. Sobretudo desde a queda do Muro de Berlim e do colapso de todas formas de pensamento historicista e de política voluntarista, deixamo-nos arrebatar pela idéia de que o mundo era regido pelas leis impessoais da economia.
O prazer não está em parte alguma, como se diz, porque está em toda parte; os sistemas não têm outro centro senão a Internet; não há mais motivo para lutas sociais que se decompõem por si mesmas, pois não há mais ordem social a subverter numa situação de perpétua mudança. Não há mais sociedade, apenas mercados e grupos unidos em rede. Logo notamos que tal economia globalizada cria desigualdades e sobretudo a exclusão, e que o mundo como um todo se latino-americaniza no sentido de que se biparte entre uma economia formal e uma economia informal; mas tal retrato conclui quase necessariamente pelo desaparecimento dos agentes, dos movimentos sociais, das idéias, pois a privação jamais conduziu à ação -fato que o marxismo compreendera profundamente ao falar tanto do papel das classes ascendentes quanto da referência a uma totalidade que, segundo Lukács, é indispensável ao surgimento de um agente histórico.
Como não comparar nossa presente situação ao século 19 europeu? À época da Revolução Industrial inglesa e continental, vimos também estilhaçar-se o modelo voluntarista da Revolução Francesa e mesmo das revoluções anteriores, a holandesa, inglesa e americana, que haviam criado as bases da modernidade política. Não se falava noutra coisa senão de liberalismo, de abertura das fronteiras, de livre circulação do capital, bem como de proletarização e miséria. A política hesitava frente à economia; as fronteiras caíam por terra e, juntos, capitalistas e socialistas prognosticavam o enfraquecimento progressivo de Estado, que se reduziria ao papel de guarda-noturno ou, com um pouco mais de seriedade, a conselho de administração das economias capitalistas. Ora, ao mesmo tempo, tudo parecia como manifestação desse próprio capitalismo, da técnica ao modo de vida, do poder à educação. Visão de mundo que foi contudo destruída pelo retorno da política, a uma só vez no interior do mundo capitalista, com a ascensão do movimento trabalhista e do socialismo, e fora dele, com a resistência das velhas classes médias, o que conduziu por exemplo ao nazismo, à queda de antigos impérios autocráticos, às revoluções comunistas, às insurreições nacionalistas ou ainda, na periferia do mundo moderno, a episódios milenaristas.
Não seria necessário indagarmo-nos hoje se nossa imagem da globalização é tão artificial quanto a do capitalismo triunfante ou mesmo do imperialismo do século passado? Essa crítica deve ser movida em dois tempos: primeiro, o que chamamos globalização constitui um fenômeno geral ou um conjunto de tendências esparsas? E depois: a vitória da economia é irreversível? Sobre esses dois pontos, as respostas que se impõem parecem repor no centro das questões a representação do mundo como globalização.
O primeiro ponto é o mais fácil de abordar, pois trata-se de realidades observáveis. Quatro grandes transformações devem ser distinguidas.
A primeira, a mais visível e culturalmente a mais importante, é a criação e difusão mundial de indústrias de comunicação que modificam cabalmente nossa experiência do tempo e do espaço, a natureza das cidades, a relação entre culturas. O que foi deflagrado pelas grandes descobertas tecnológicas dos anos 60 e 70 redundou na criação de uma sociedade informatizada, nova etapa da sociedade industrial, e que apresenta a novidade de se espraiar a todo o globo, sobretudo por razões técnicas.
A segunda é de natureza diversa: trata-se da irrefreável inundação da economia de produção por um capitalismo financeiro que aufere mais lucros na movimentação de capitais do que no investimento produtivo. A internacionalização do capital financeiro já se achava na base da teoria de Hilferding sobre o imperialismo, editada no ano de 1910, e nas célebres análises de Lênin inspiradas nesse trabalho e publicadas em 1916; hoje, porém, ela ganhou proporções inusitadas, de tal sorte que mais de US$ 1 trilhão muda de mãos todos os dias, sem que tais movimentos correspondam em sua essência ao comércio de bens e serviços.
A terceira não é de ordem nem técnica e cultural nem econômica e financeira, mas política: trata-se da emergência de novos países industriais. O Japão foi de início uma figura isolada, porém logo seguida pelos tigres asiáticos; tempos depois, inúmeros países da Ásia ingressaram num processo de rápido crescimento, e na América Latina (como nas demais regiões) vemos países alcançarem em poucas décadas uma modernização acelerada, do Marrocos ao Chile, da Turquia à Malásia. Por fim, eclodiu o crescimento chinês: 9% anuais nos últimos 20 anos, e a certeza de que num breve espaço de tempo a economia chinesa será de longe a mais volumosa do mundo.
A quarta, afinal, é o que chamamos americanização, ou seja, o contrário da globalização, pois, se é verdade que a cultura de massas americana absorve temas culturais oriundos de todas as partes do globo, não é menos certo que a cultura de massas mundial é essencialmente americana, que os jovens de todo o mundo vestem camisetas fabricadas nos EUA e adotam certo estilo de vida e um imaginário tão diretamente pautado pelos norte-americanos quanto as arbitragens entre as empresas internacionais têm como foro jurídico os EUA.
Tal distinção, ainda que exposta de modo tosco como o fiz aqui, nos municia de elementos para responder à segunda questão. A sociedade informatizada que se vem formando há 20 anos produziu à nossa volta o que Georges Friedmann já costumava chamar de um novo "meio técnico", uma civilização material que modifica todas as categorias de nosso pensamento e nossas condutas. Seria absurdo não cogitar aqui de imperialismo e de dominação americana ou ocidental. Em região alguma do mundo pode uma população ou um governo dar-se ao luxo de manter-se à parte de tais alterações; os exemplos de "fundamentalismo", de resto, são extremamente raros. Todos embarcamos na sociedade informatizada, mesmo que a participação de cada um seja desigual, mesmo que a repudiemos como invasão cultural.
Em contraste, o triunfo do capitalismo financeiro internacionalizado e o enfraquecimento dos controles políticos e sociais da economia não se encontram mais inscritos em uma necessidade histórica como, há cem anos, era o caso do triunfo do imperialismo. Não devemos confundir uma despolitização da economia, frequentemente denominada "ajuste estrutural" ou "livre circulação de capitais", que deu fim aos antigos sistemas de controle político da economia, com a criação de uma sociedade liberal, ou seja, de uma economia regulada pelo que chamamos de leis do mercado. A julgar pela análise histórica, toda a fase de liberalização da economia responsável por tensões sociais insustentáveis é seguida de uma fase inversa de reconstrução de um controle social da economia.
Essa primeira evolução, já evidente nos países mais industrializados, é rematada pelo que poderia parecer à primeira vista como o fenômeno mais importante do início do século 21, ou seja, a consolidação e o triunfo de novos regimes autoritários que aliam liberalismo econômico e nacionalismo cultural. A atual evolução da China e sobretudo as ameaças de implosão que pesam sobre esse país parecem conduzir à substituição do comunismo por certo nacionalismo autoritário, capaz de gerar uma abertura econômica controlada, e não a um liberalismo de cunho democrático. É Pequim que devora Hong Kong -não o contrário.
Os que acreditam no caráter "global" da idéia de globalização apressam-se a expandir-lhe a ideologia, pois já estamos em via de perder tais ilusões e somos testemunhas do fiasco da criação de uma nova civilização, do desenvolvimento patológico de um capitalismo financeiro desvinculado da sociedade e da aparição de novos atores políticos em todos quadrantes do globo. Acreditávamos que a economia faria por submergir a política, mas já está em curso a desforra do mundo político.

Tradução de José Marcos Macedo.

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