São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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EUA patenteiam vírus de índio e são acusados de 'vampirismo'

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

A concessão, em março de 95, da patente número 5.397.696 para o Instituto Nacional de Saúde (NIH) explorar comercialmente uma linhagem celular encontradas em indígenas de Papua Nova Guiné está provocando acusações de "vampirismo científico" contra o governo dos EUA.
O governo de Papua Nova Guiné estuda até a possibilidade de denunciar os EUA na Corte Mundial, entidade sediada em Praga (República Tcheca) que conta com a participação de 116 países (mas não dos Estados Unidos).
Os primeiros a denunciar a patente como antiética foram os integrantes da organização não-governamental canadense Rural Advancement Foundation International (Rafi). Em manifesto distribuído via Internet, a Rafi diz que o episódio é "parte de um padrão de exploração injusta, da parte de países ricos, de recursos genéticos desenvolvidos por povos indígenas".
O responsável do NIH pelo setor do sul da Ásia e Pacífico, Amar Bhat, disse à Folha que a Rafi e outras entidades "estão levantando questões legítimas sobre o uso científico de material biológico" e "podem ter boas intenções".
Mas, segundo ele, os métodos da Rafi são "questionáveis" e a entidade está "totalmente errada no que se refere aos fatos específicos". Bhat alega ter tentado estabelecer contato com a Rafi, mas não encontrou receptividade.
A descoberta
A história começou há cerca de 11 anos, quando a antropóloga médica norte-americana Carol Jenkins, do Instituto de Pesquisa Médica de Papua Nova Guiné começou a trabalhar com os índios da tribo hagahai.
Os hagahai estão entre os povos mais primitivos do planeta. Eles só começaram a ter contato com a civilização ocidental a partir de 1983, quando alguns de seus 300 e poucos integrantes se aventuraram fora das florestas nas encostas dos montes Shrader, em busca de ajuda para conter a malária, que indígenas de outras tribos lhes haviam dito existir nas cidades.
Jenkins estava entre os cientistas que foram assistir os hagahai. No decorrer de suas pesquisas, ela descobriu num indígena de 21 anos um retrovírus HTLV-1 (da sigla em inglês "vírus humano da leucemia") benigno, diferente de qualquer outro encontrado antes.
Os cientistas norte-americanos conseguiram estabelecer uma linhagem celular, células geneticamente idênticas que podem se reproduzir indefinidamente, desde que mantidas em condições apropriadas de cultura.
Segundo Jenkins, todos os testes feitos por ela foram autorizados pelo governo de Papua Nova Guiné e pelos líderes dos hagahai.
Ela também afirma ter pedido permissão para solicitar a patente para a linhagem celular e ter se comprometido a repassar para os hagahai todo o dinheiro a que ela venha a ter direito em caso de comercialização da patente.
A exploração comercial
Bhat diz que, ao contrário do que muitos acusadores denunciam, o NIH não patenteou o sangue do indígena, nem muito menos o próprio hagahai, como chegou a ser publicado, mas a linhagem celular derivada do HTLV encontrado nele.
A patente dá o direito ao governo dos EUA -ou à empresa que a comprar dele- de, por 17 anos, usar a linhagem celular com objetivos comerciais.
O caso hagahai é apenas o mais recente em uma série de controvérsias sobre a ética científica no trato da biogenética. Cerca de 200 líderes religiosos nos EUA defendem uma moratória na concessão de qualquer patente genética para que se possa discutir suas implicações, e o Parlamento Europeu pode proibir o patenteamento de qualquer forma da vida.
O professor de direito Henry Greely, da Universidade de Stanford, uma das mais prestigiosas dos EUA, acha que -pelo menos no caso dos hagahai- há mais panfletagem política do que fundamento ético entre os que se opõem à concessão da patente.
"A patente não dá a posse de material genético humano. A idéia de que o governo dos EUA passou a possuir um indígena do sul do Pacífico é mero lixo".

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