São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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O mandarim

IVAN SANT'ANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Teodoro, personagem de Eça de Queiroz, amanuense do Ministério do Reino, de mão firme, repenicou a campainha e fez morrer, do outro lado do mundo, o mandarim.
Pouco antes da queda da Bolsa de Valores de Nova York, em outubro de 1919, o ator Charles Chaplin, então com 40 anos, e já riquíssimo, leu em uma coluna de jornal que as ações valiam muito menos que seus preços de mercado, então catapultados para níveis estratosféricos pela febre da especulação.
Os argumentos do colunista eram sólidos, convincentes. As ações só estavam subindo -dizia- porque os bancos vinham emprestando dinheiro aos seus clientes para compra de ações, ações essas que passavam a servir de garantia para os empréstimos, numa ciranda que só poderia dar certo se o mercado continuasse a subir eternamente, coisa difícil de acontecer pois os mercados, bem... os mercados são mercados, um dia têm que cair.
Chaplin, não sem uma ponta de tristeza, que não era difícil para ele interpretar, vendeu suas ações, trocando-as por títulos do Tesouro.
Uma semana depois o mercado desabou, jogando, primeiro os especuladores, depois quem não tinha nada a ver com aquilo, depois o mundo todo, na miséria, na depressão e no desemprego.
Diz a teoria do caos, hoje em dia bem aceita nos níveis mais altos do pensamento mercadológico, que se uma borboleta bate asas no Brasil pode provocar um maremoto na China. E antes que alguém pense que sou completamente maluco, explico:
Digamos que o bandeirinha do jogo Brasil x Itália, na final da Copa do Mundo de 1994, tivesse invertido um lateral, no início do jogo. Em vez de dar para o Brasil, desse para a Itália. Pois saibam que este lateral, se invertido, mudaria totalmente a história do jogo. Todas as ações que se sucederam a partir daquele momento seriam diferentes. Talvez ganhasse a Itália, talvez o Brasil, talvez não houvesse prorrogação, nem pênaltis. E se não houvesse prorrogação, um homem poderia ter saído de casa mais cedo, na Indonésia, e não teria atropelado e matado, uma hora mais tarde, o homem que poderia, por exemplo, vir a descobrir a cura da Aids.
Aquela inversão do bandeirinha pode ter matado milhares de pessoas, de Aids. Assim funciona a teoria do caos.
Quando Carlitos vendeu suas ações, em 1929, pode ter, ele mesmo -alterando sinistramente o caos- determinado a queda da Bolsa, a depressão, o desemprego, o nazismo, o holocausto. E quando lhe perguntaram porque vendera suas ações, sem perceber as terríveis consequências de seu ato, respondeu com ingenuidade chapliniana: "Porque o jornal mandou".
Ao declarar que o Plano Real poderia fracassar, o economista Rudiger Dornbusch mudou totalmente o rumo das coisas, como o amanuense de Lisboa.
Para começar, eu e o Sérgio, ou melhor Shaun e Shem, não estaríamos juntos aqui no Mais!, o que pode mudar para sempre -para quem acredita na teoria do caos, evidentemente-, para melhor, ou para pior, a carreira literária dos dois. Pode até mudar a hora de nossa morte. É de arrepiar, plagiando o Sérgio, ou ele me plagiando, depende de qual dos dois o leitor vai ler primeiro.
Mas Dornbusch pode mudar outras coisas. Digamos que o grande financista, e mega-especulador, George Soros, tal como Carlitos em 1929, tenha lido a declaração do Dornbusch e desde então venha sorrateiramente minando os pilares do nosso prosaico real, moeda ainda de ficção, que vive do bate e rebate do capital que vai e vem, sem pátria, e muito menos princípios. E Soros é peso-pesado, um cara que já derrubou a própria libra, em 1992, excluindo-a da União Monetária Européia. Sim, a própria esterlina, com seus não sei quantos séculos de tradição. O húngaro Soros, com seu poder de fogo, vai pesar mais que o Carlitos de 29, mais que o bandeirinha da Copa, mais que a borboletinha.
Economistas sempre fazem previsões. E se Dornbusch acertar esta, poderá dizer ufano: "Fui eu".
Mas eu, que saí dos números para entrar nas letras e ser comparsa do Shem, direi que foi a borboleta, aquela que voou.

LEIA conto de Sérgio Sant'Anna à pág. 5-5

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