São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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Katastrofe

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um pássaro crava seu canto de serra na clara manhã da Alemanha nublada. Um canto de fogo, a Alemanha estranha, os relógios despertando precisos às 5h30 da manhã que Catarina todo dia desconhece.
Um pássaro desconhecido perfura toda manhã a Alemanha moderna -o canto de fogo persegue, segue, segue, prossegue. O pássaro dentado rasga e arranha a manhã alemã num grito de gralha, de corte de serra. Não faz tic-tic o grande pássaro berlinense de aço, não é joão-de-barro.
Catarina finge que está dormindo. No quarto de janelas sem cortina -alemães precisam de claridade-, a estridência de luz de dia fere seus olhos, o gorjeio do pássaro penetra sem nome o seu ouvido. Em pouco tempo Johann está pronto para sair, desses homens de profissão exata, que acordam cedo para reconstruir, nos arredores e no centro de Berlim, país tão estrangeiro para ela. Com hálito de chá, ele lhe dá um beijo de despedida. Ela finge que dorme porque está brigada com Johann. Ela é muito difícil de fazer pazes.
- É bem verdade que ontem quase caiu no nervosismo generalizado. Mas endureceu assim que percebeu Johann com pena dela. Notícias ontem davam que o real despencara de grandes alturas, numa queda sem volta. Ela estava de novo fora. Como sempre nas grandes calamidades, nas secas e enchentes, nos escândalos de corrupção e na morte dos ídolos de lata do seu país, ela estava fora. Recebida a notícia, a distância encarregou-se de escangalhar uma já alarmante vontade de chorar. Mas logo ela endureceu e sufocou tudo na quilha afilada do seu peito de ave.-
Hoje é o dia seguinte. Catarina não sabe o nome do pássaro que serra toda manhã a névoa da Alemanha. Não sabe, nunca perguntou a Johann que tipo de tordo, rouxinol, canário. Da árvore plantada à janela, o canto de fogo invade o quarto. Ela se esconde da claridade entre a plumagem dos travesseiros, no tecido acolchoado dos edredons que parecem cheios de bolsas de ar, como convém ao corpo das aves. Sente vontade de ir embora ainda hoje.
- Mas é bem verdade que, depois de ontem, voltar seria um vôo para o nada, seria como quando fecharam para a Líbia os espaços aéreos do mundo. Os aviões da Líbia indo e vindo contra barreiras de nuvens, pássaros desesperados voltando ao ninho por não ter onde pousar. Salvo engano seu, foi para a Líbia que fecharam os aeroportos da Terra. Os aviões líbios rondando ameaçadores os céus como pássaros de mau agouro, dava pena.-
Tudo o que ela fez ontem foi faltar aos compromissos, sem qualquer explicação. Não imaginou que estivesse fazendo coisa tão grave assim. (Sempre pensava que não estava fazendo coisa tão grave assim.) Apenas não avisou, não quis, isolou-se, foi circular pelos mercados livres e, por pura inconsequência, foi trocar dinheiro no Europa-Center. Olhou fixo para a cara européia do homem do guichê -o homem jamais saberia que ela tinha qualquer coisa a ver com a queda do dólar, pensou, reprimindo uma gargalhada. No comentário curto dos estrangeiros, o homem se referiu à perda súbita daquele dia, como se lamentasse por ela a pequena transação comercial em que a vítima era, afinal, ela. O homem estava orgulhoso de vender sua moeda forte. Catarina ainda parou um instante antes de sair, estudando a tabela de cotações do dinheiro do mundo. Gostava dos nomes: florim, lira, libra e coroa.
- Mas é claro que, sufocada no seu peito em quilha, desde ontem, a aguda vontade de chorar, ela balançou a cabeça e deu as costas. Tratava a catástrofe, de seu país falido como uma perturbação passageira, como quem precisa acostumar-se com os defeitos de um irmão, as manias de um pai ou de uma mãe. Não era a primeira vez nem seria a última. Não deixaria marcas visíveis. Ela mesma pertencia a uma geração sem marcas e isso era leve e bom como seria ser uma ave. Atravessara pairando, criança, ditaduras e pequenas guerras. Não tinha envolvimentos. Pessoa e pátria eram entidades distintas para ela. Não tinha marcas, como se seu corpo fosse apenas cheio de bolsas de ar.-
Assim Catarina faltou a todos os compromissos de ontem. Pelo que seria interpretado por Johann como uma mistura de inconsequência com catástrofe, não foi se expor diante da gente que chegava de bicicleta para assisti-la falar: "as mulheres alemãs de bunda abatatada, alargada nos selins estreitos das bicicletas", ela tinha lido em algum lugar a descrição engraçada, os homens grandes e curiosos, buscando saber da bióloga Catarina sobre os seres vivos e as leis da vida na Amazônia. Ela não foi, deixou no suspense a engenharia das construções de barro dos passarinhos brasileiros. Rasgou o discurso em que discorreria sobre um raro conjunto de ninhos de joão-de-barro encontrado em São Lourenço, Minas Gerais, construídos à maneira de arranha-céu ou casa de apartamentos. Deixou no suspense esses castelos no ar, o canto alegre e constante dos passarinhos brasileiros.
- Aposto que você não foi por vergonha... -Johann acusou-, por pura vergonha de ser quem você é hoje... Mas não custava ter avisado. É um absurdo. Ficou todo mundo esperando e você nem sequer telefonou para cancelar. Olha, isso é uma coisa inconcebível aqui. Isso só pode ser coisa do teu país. Eu sei que lá vocês não se comprometem, não cumprem nada... -Johann desabafou com ela ontem.
Catarina não se sentiu ofendida, apenas incompreendida, ilhada como uma Líbia. Não disse nada. Não revelou o quanto a incomodava a claridade da manhã no quarto sem cortinas, o gorjeio daquele pássaro que serra, que segue, segue, prossegue e a persegue como uma lembrança desconhecida -por acaso ele saberia o nome do pássaro de fogo? Não contou como se sentiu fora, alheia, exterior a tudo durante aquele dia todo. Não disse de sua vontade de se isolar como uma águia -por acaso ele sabia que as águias, mesmo acasaladas, levam vida solitária? Sabia que elas escolhem, para ninho, as copas de grandes árvores ou mesmo rochas em penhascos inacessíveis? Não contou que foi trocar dinheiro no Europa-Center só para ver o que sentia. Não disse que pátria e pessoa jamais foram, para ela, a mesma e única coisa, a unidade monetária e forte que parecia ser para ele. Não contou que desistira da conferência também para puni-lo, a ele e ao amor deslocado dos europeus pelos bichos. "Toda aquela deslocada apreciação pelo sagrado da vida. Tanto amor canalizado para a criação de frutos e flores e animais", ela citaria em discurso. Se ela se interessava por alguma coisa em biologia era pela vida vegetativa das árvores da floresta, elas que não experimentavam nem conflito nem aflição de qualquer espécie, arraigadas, estabilizadas, enraizadas com toda calma e com antiquíssima tranquilidade nas várzeas e nos igapós dos úmidos platôs da Amazônia. Catarina também não revelou a Johann que talvez voltasse no dia seguinte para casa.
- Hoje é o dia seguinte. Mas é verdade que se Catarina voar de volta hoje talvez veja lá de cima, com seus olhos de águia desconfiada, as construções de barro dos passarinhos brasileiros despencando como um castelo de cartas, em efeito dominó, o país apresentando bem no meio um rombo do tamanho do da Igreja da Memória de Berlim, a torre arrombada, a ruína de guerra. Mas é verdade que no seu país sem memória logo tudo será esquecido porque não será nem sequer fixado. Afinal entre os réis e os reais estendia-se a figura longilínea do avô de Catarina, que sempre se recusara determinantemente a mudar de moeda. Passara a vida toda soltando muxoxos para as falências e as moedas novas: chamou tudo sempre de réis, de contos de réis.-
Hoje é o dia seguinte. Como Catarina é muito difícil de fazer pazes, está desde ontem pensando em um modo de punir a arrogância de Johann. Ainda embaixo do acolchoado dos edredons, sentiu-se leve como se seus próprios ossos longos contivessem ar por dentro. Descobriu-se. Percebeu que há tempos o canto de fogo se calara. Ouviu o estrondo distante de um avião sobrevoando o prédio velho. Por uma palavra daquela língua estrangeira ela tinha especial simpatia, "Flugzeugkatastrofe" -grande, alarmante, o pior de todos os desastres aéreos numa única expressão. Saiu de casa em jejum. Quando entrou na padaria alemã de sempre, sorriu como quem, por pura sorte, aterrissara de pára-quedas em território amigo. É que havia ali um homem que flertava com ela toda vez. Hoje ela cedeu misteriosamente. Percebeu que cedia a uma estranha vontade de se aninhar. Passou a tarde num quarto escuro fazendo sexo com o homem desconhecido. E quando ele tocou no corpo magro dela pela primeira vez, ela quase chorou daquela catástrofe pessoal e pequena, como se ele estourasse as bolsas de ar por baixo da plumagem dela. Catarina só então voou -afinal, só depois de abandonar a idéia de imitar as aves é que o ser humano conseguiu voar.

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