São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ella já nasceu pronta

RUY CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não haverá substituta para Ella Fitzgerald. E não era à toa que a chamavam de "primeira-dama da canção" -um título que ela ganhou em vida de duas majestades à sua altura: Billie Holiday (1915-1959) e Sarah Vaughan (1924-1990). Não que Ella fosse a "melhor" -embora não faltasse quem a defendesse como a maior de todas, por ser mais completa do que Billie, embora menos emocional, e mais emocional do que Sarah, embora não tão completa.
Ella era à prova de surpresas. Imagine um instrumento musical vivo, pesando 120 quilos nos bons tempos, difícil de vestir e transportar e nem sempre no melhor dos humores -mas que, à frente de um microfone, num palco ou num estúdio, era infalível em oferecer performances nunca menos que perfeitas. Ella Fitzgerald era esse instrumento. Às vezes podia soar como um clarinete, outras vezes como um sax alto, ou até como um trompete com surdina. Mas essas comparações eram ociosas. O que Ella executava magistralmente era o mais perfeito e natural dos instrumentos: a voz humana.
Ela era um instrumento melódico, harmônico e rítmico a serviço da canção. E não importava a canção. Na voz de Ella, era como se aqueles 32 compassos ganhassem finalmente uma versão passada a limpo, que transformava as versões anteriores em rascunhos. O próprio Ira Gershwin confessou que só percebeu a completa beleza das melodias de seu irmão George depois de ouvi-las com Ella. E olhe que Ira estava falando de "The Man I Love", "Embraceable You", "Our Love is Here to Stay", que já estavam havia décadas incorporadas ao patrimônio da humanidade quando Ella finalmente as gravou.
Mas, para que não se diga que Ella limitava-se a retocar canções que já eram, desde o berço, um deslumbramento, é preciso lembrar a quantidade de deliciosas tolices que ela, à falta de qualquer faísca de inteligência do material, incendiou ritmicamente, com um "swing" que garantiu a passagem de tais canções para a posteridade -coisas como "Mr. Paganini", "Flying Home", "Air Mail Special" e muitas outras.
Aliás, foi com esse material barato, abaixo até dos padrões de Tin Pan Alley, que Ella começou a construir sua carreira -em 1935, aos 17 anos, quando foi "descoberta" num concurso de calouros no Harlem e logo adotada como "crooner" pelo "band-leader" Chick Webb. Ella já nasceu pronta. Seus discos com Webb provam isso, e o estrondoso sucesso de ambos com "A-Tisket, A-Tasket", em 1938, quando ela tinha 20 aninhos, era como se já tivesse acontecido tarde.
Como cantora, nunca houve uma "jovem" Ella (assim como houve uma "jovem" Billie e uma "jovem" Sarah) em contraposição a uma Ella "madura". Uma comparação entre os seus discos na gravadora Decca, de 1935 a 1955, com os de sua fase mais celebrada, na Verve, de 1956 a 1966, mostra que o timbre, o balanço e a classe já estavam lá, desde sempre. A diferença estava no tipo de material que as duas gravadoras lhe davam para cantar, e, contrariando a opinião da maioria, não ponho a sua fase Decca abaixo da da Verve.
A Decca lhe dava muitas canções fuleiras, mas que Ella promovia à altura da sua excelência. Acoplava-a com outros craques de seu elenco, como Bing Crosby, Louis Armstrong e Louis Jordan, dava-lhe superarranjadores, como Sy Oliver e Gordon Jenkins, e permitia que ela se movesse à vontade entre as suas duas maiores influências: a da grande Connee Boswell, por sinal branca, e a de Leo Watson, cujo "scat singing" Ella tomou para si e transformou numa marca registrada com a qual influenciou meio mundo. E foi nessa fase que ela gravou as versões definitivas de "Undecided", "How High the Moon", "Lullaby of Birdland", "Oh, Lady Be Good", "I've Got the World on a String" e outras, que, se sua carreira parasse por ali, já lhe garantiriam o ingresso no céu dos jazzistas.
Até que, em 1956, o produtor Norman Granz conseguiu roubá-la da Decca para ser a estrela da sua nova gravadora, a Verve. Mandou polir os microfones, cercou-a de arranjos suntuosos e deu-lhe para gravar o creme da música popular, que são as canções que Cole Porter, Irving Berlin, Harold Arlen, os Gershwin e outros gênios escreveram para a Broadway: álbuns duplos, triplos e até quíntuplos em homenagem a cada compositor. O resultado foram os "song books", que se tornaram coqueluche e são, para muitos, os discos pelos quais Ella será sempre lembrada.
Sua última fase, na Pablo, a nova gravadora de Granz a partir dos anos 70, já foi marcada pela saúde instável que se refletiu na sua voz e não despertou o mesmo entusiasmo entre os "connoisseurs". Mesmo assim foram dezenas de discos, muitos com o pianista Oscar Peterson ou o guitarrista Joe Pass, e todos tiro certo em vendas. Pensando bem, quantos discos Ella terá vendido nas suas sete décadas de estrada? No dia em que fizerem essa conta, os jovens DJs, que nunca lhe deram bola, cairão de quatro ao descobrir que foi possível a uma grande artista passar muito bem sem eles.
Ela não gostava da imprensa e tinha horror a entrevistas. Por que seria? Sua biografia oficial mostra uma vida sem sensações: dois breves casamentos (o primeiro deles anulado), um filho, nenhum escândalo, nada que a comparasse a Billie Holiday, Dinah Washington ou Anita O'Day, três espalha-brasas. Sussura-se que esse mistério ocultaria episódios dolorosos de sua infância como órfã. Será? Agora talvez saibamos.
Mas terá importância? Ella Fitzgerald nunca foi uma pessoa física, uma mulher, muito menos um corpo. Foi uma voz -e, entre as cantoras, nenhuma outra mais querida na música popular do século.
*
Leia a discografia básica de Ella Fitzgerald:
"A Jazz Hour with Ella Fitzgerald". Com a orquestra de Chick Webb, 1935-1939. Movieplay, (nac.).
"75th Birthday Celebration". Estojo com dois CDs contendo 39 faixas clássicas da Decca, 1938-1955, inclusive a gravação completa de "Mr. Paganini". Ótima qualidade de som. MCA (imp.).
"The Complete Ella Fitzgerald Song Books". Caixa com 16 CDs com os "song books" de C. Porter, Rodgers & Hart, G. Gershwin, I. Berlin, D. Ellington, H. Arlen, J. Kern e J. Mercer. Verve/Polygram (imp.). Há edição nacional dos "song books" de Porter, Gerswin, Kern e Mercer.
"Porgy and Bess". Com Louis Armstrong. Verve/Polygram (nac.).
"Mack the Knife: Ella in Berlin". Verve/Polygram (imp.).
"Clap Hands, Here Comes Ella". Verve/Polygram (nac.).
"30 by Ella". Seis "medleys" (30 canções) com acompanhamento de Benny Carter. Capitol (imp.).
"Ella Abraça Jobim". Tardia, mas bela homenagem a Tom, no estilo dos "song books" originais. Pablo (nac.).

Texto Anterior: Cantora tinha voz insuperável
Próximo Texto: Médicos ensinam a matar bebês
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.