São Paulo, segunda-feira, 17 de junho de 1996
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Pensamentos em trânsito

JOÃO SAYAD

Vida de ministro é difícil. Uma vez nomeado, precisa adaptar o discurso. E a adaptação é delicada: é preciso revelar um pouco da sua personalidade, dizer a que veio; mas é preciso cuidado para não discordar do discurso do governo e do bom gosto da opinião pública.
Quanto mais difícil calibrar o discurso da autoridade, melhor para os colunistas semanais, que encontram nas palavras oficiais fonte farta de inspirações para pensar, especular, criticar e escrever.
Logo de manhã cedo, apenas havia sido indicado, o ministro Kandir declarou pelo rádio que "o emprego só aumentará depois das reformas". Eu estava preso no trânsito, pensando na coluna semanal, e as questões começaram a surgir:
1) A reforma administrativa é bem-vinda. O governo precisa de agilidade, de quadros modernos e treinados.
Mas será que o fim da estabilidade vai aumentar o emprego? Ou será que os funcionários públicos do futuro, com curso superior e usando "notebook" para fazer orçamento público, não vão apenas substituir o barnabé de mais de 40 anos que escreve com caneta-tinteiro e ganha salário? Gera-se emprego para uns e desemprego para outros.
Será que a soma é positiva? Será que o barnabé de mais de 40 anos consegue emprego no McDonald's?
2) A reforma tributária pode aumentar o emprego. Se desonerar as exportações, a economia poderá crescer mais depressa e gerar postos de trabalho.
3) E a reforma da Previdência, será que aumenta o emprego? Se o tempo de contribuição aumentar para 35 anos, como é financeiramente necessário, as pessoas trabalharão mais tempo. Aumentará o número de trabalhadores procurando emprego. Haverá emprego para contribuir por mais tempo e se aposentar mais tarde? O índice de desemprego crescerá.
4) A reforma da CLT diminui os custos de contratação e de demissão. Torna o mercado de trabalho mais flexível. O trabalhador pode trabalhar um dia, uma semana, dois meses. O emprego pode aumentar. Mas será muito instável, parecido com o dos bóias-frias.
5) Se as reformas da Previdência, administrativa e tributária diminuírem o déficit público, o emprego aumenta ou diminui?
Déficit público menor, demanda menor, produção menor, emprego menor. Por esse lado, o emprego diminui.
Se déficit público menor implicar juros menores, os investimentos do setor privado poderão aumentar e, com isso, aumentará o emprego. Que bom.
Mas será que os juros são altos por causa do déficit público ou são altos porque queremos atrair dólares para financiar importações maiores do que as exportações, como dizia o Serra, antecessor do Kandir?
6) Importações diminuem o emprego. Exportações aumentam o emprego. Juros altos financiam importações maiores do que exportações. Juros altos diminuem o emprego, não por causa do déficit público, e sim devido ao déficit comercial.
Se o câmbio se desvalorizasse, como quer o ex-ministro Delfim, as exportações aumentariam, e também o emprego. Mas a inflação voltaria e o emprego diminuiria.
7) Então, vamos deixar o câmbio sobrevalorizado e esperar que os exportadores tenham ganhos de produtividade, o que reduz seus custos. E reduz o emprego.
O trânsito congestionado me deixou confuso. Como as reformas aumentam o emprego? Estacionei na alameda Campinas, logo depois da Fiesp, e veio um sujeito mal-encarado se oferecer para tomar conta do carro. Tive que aceitar.
Ladrões de carro aumentam o emprego? Para cada carro da frota nacional de automóveis há um ladrão, um "tomador de conta" de carro, um policial para prender o ladrão, uma pessoa para vender o carro roubado.
Afinal de contas, por que aumentar o emprego? A gente vive para trabalhar ou trabalha para viver? Talvez o trânsito atrapalhe o pensamento.
Se falta emprego, e isso é considerado natural pelos economistas, podemos trabalhar menos, como os franceses propõem. Os salários aumentam um pouco, as férias são um pouco mais longas -um feriado por semana, no dia de Santo Antônio, dos Namorados, de São João e de São Pedro. Essa reforma deveria começar na China e depois no Sudeste Asiático.
Será que o problema não é a distribuição de empregos e salários entre nós e entre países diferentes, entre os que trabalham muito e ganham pouco, os que trabalham pouco e ganham muito e os que não trabalham e não ganham nada? Esses vão esperar as reformas.

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