São Paulo, terça-feira, 18 de junho de 1996
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Realmente, um país (muito) sem-vergonha

ALOYSIO BIONDI

O presidente da República diz que o problema do Brasil é a falta de vergonha. Desta vez ele tem razão. Veja-se o leilão de privatização do trecho centro-leste da Rede Ferroviária Federal, na última semana. Foi mais um assalto desavergonhado, à luz do dia, contra o patrimônio coletivo, isto é, de empresários, classe média e povão. Assalto e escárnio juntos.
Com 7.000 quilômetros de trilhos, centenas de locomotivas, estações e sistema de comunicações, o trecho foi arrendado por míseros R$ 320 milhões, a serem pagos em 30 anos, isto é, coisa de R$ 1 milhão por mês.
Para comparar e avaliar o assalto: no mesmo final de semana, o governo paulista recebeu propostas para privatização de um trecho da rodovia Anhanguera-Bandeirantes, de 250 km. Esperava ofertas de R$ 800 milhões. Recebeu propostas de quase R$ 2 bilhões, para um prazo menor, de 20 anos.
Repetindo: são R$ 2 bilhões pelo arrendamento de 250 km das rodovias, contra R$ 320 milhões por 7.000 quilômetros e toda a infra-estrutura e material rodante da ferrovia.
Esses contrastes são suficientes para avaliar as dimensões do assalto. Mas vale a pena dissecar detalhes, para avaliar o grau de deboche com que a equipe FHC/BNDES vem tratando a sociedade brasileira.
Há meses, corriam rumores de que a diretoria da Rede Ferroviária Federal não se conformava com os "preços" de arrendamento, calculados por uma firma de consultoria estrangeira. Queria que fosse feita uma revisão.
Em debate promovido recentemente pelo Instituto de Cidadania, este jornalista perguntou ao ministro dos Transportes, Odacir Klein, se as críticas ao "preço de banana" eram verdadeiras.
O ministro confirmou. E apresentou uma "justificativa" digna destes tempos da equipe FHC: não havia necessidade de rever os preços porque nos leilões de privatização certamente apareceriam compradores dispostos a dar lances com preços mais altos do que o valor "mínimo" pedido pelo governo.
Realmente, um dos compradores antecipou oficialmente a intenção de pagar R$ 700 milhões pela malha centro-leste. O valor continuava baixo. Mas nem ele se concretizou.
As vésperas do leilão, os compradores se reuniram em um "consórcio" -que na Justiça certamente teria outro nome...
Não houve leilão, não houve lance. O consórcio ofereceu o preço mínimo de R$ 320 mi, subfaturado, segundo o ministro dos Transportes. E levou.
Há, sim, falta de vergonha no Brasil. De quem patrocina assaltos contra o patrimônio coletivo, apelidados de política de privatização. E há falta de vergonha por parte da sociedade, que se submete aos assaltos e ao deboche sem reagir.
Pode-se esperar que o Congresso dê um basta aos descaminhos da privatização? Só mesmo com "caras-pintadas" nas ruas. Não apenas estudantes, mas empresários, classe média e povão. Assaltados.
Cândido O novo ministro do Planejamento, Antonio Kandir, está afinado com a linha de privatização do seu antecessor, José Serra. Para ele, a formação do "consórcio" e a falta de lances não têm "nada de mais", pois "o preço mínimo já embute o lucro que o governo acredita que pode ter". Não é o que o ministro Klein confessa.
Cândida Dona Elena Landau, diretora de Desestatização do BNDES, foi mais longe e se disse feliz com a falta de lances: "Há um ano duvidavam do leilão, e agora querem até sobrelucro". Pois é.
Saqueadores Os prejuízos astronômicos sofridos pelo Tesouro (contribuintes) com a privatização da Petroquisa, subsidiária da Petrobrás, estão retratados em reportagem ultra-informativa da jornalista Mara Luquet, na "Gazeta Mercantil" do último dia 14. Um prejuízo de R$ 3 bilhões. Que foram parar no bolso dos "compradores".
Polianas O faturamento do comércio da Grande São Paulo caiu 8,5% na comparação com maio de 1995. Às vésperas do Dia das Mães, as manchetes diziam que as vendas estavam crescendo 55% no mês...

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