São Paulo, sábado, 22 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Kissin possui genialidade desigual

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Adolescentes não gostam de Haydn. Isto é um tanto estranho, quando se considera o gosto do compositor por modulações inesperadas, silêncios dramáticos, frases assimétricas -os maneirismos da vanguarda do século 18, eternamente sedutores para ouvidos dos 15 aos 25 anos.
Mas esse maneirismo e essa vanguarda, no caso, são controlados por um estilo que faz dele um instrumento mais de ironia do que de persuasão. O classicismo de Haydn é rico de excentricidades, mas a excentricidade maior é a da lógica, capaz de integrar tudo com a devida dose de ambivalência, ou de sabedoria.
Evgeny Kissin foi por tanto tempo o adolescente prodígio que surpreende agora escutá-lo, passados os 25 anos, interpretando a Sonata em lá maior, Hob. 30, de Haydn. É uma das sonatas mais excêntricas: dois movimentos, ininterruptos, que se multiplicaram em quatro, incluindo uma sequência engenhosíssima.
Com o brilho musical e digital de costume -escalas vertiginosas, ornamentos maravilhosamente bem articulados, baixos profundíssimos, presença inconfundível e uma honestidade tocante- Kissin fica mesmo assim devendo alguma coisa: aquilo, talvez, que os vienenses chamavam de "Witz" (malícia, ou ironia).
Seja aqui ou na Sonata 52, em mi bemol -a favorita de todos nós- seu Haydn está mais próximo de Schubert do que de C.P.E. Bach, mais projetado no romantismo do que recriando, a seu modo, o rococó. É artificiosamente adulto, e não adultamente artificial.
Faz a gente sentir falta de Brendel (cuja gravação da sonata está incluída na coletânea "The Art of Alfred Brendel", da Philips), ou de Andreas Staier (que gravou a mesma sonata, em pianoforte, para a Harmonia Mundi).
A glória do CD é a Sonata em lá menor, D. 784, de Schubert. Kissin, aqui, está num território que lhe é muito mais familiar e que ele se encarrega de desfamiliarizar, com enorme vigor e originalidade.
O filósofo Theodor Adorno falava do parentesco entre a beleza natural, para além de qualquer definição, e o caráter da música de Schubert. A simplicidade schubertiana pode soar sublime, ou simplória, para não dizer tola, de acordo com a interpretação.
Kissin amplifica o teatro musical de Schubert, traduz essa música para os grandes espaços da interioridade. Não é um Schubert muito schubertiano, talvez, mas quem sabe não é o adjetivo que sempre foi mal compreendido?
Agora que Martha Argerich e Nelson Freire cancelaram seu recital (e há sempre uma dúvida sobre a promessa de outro), resta o consolo -e que consolo!- de saber que Kissin vai tocar, no dia 1º de agosto, no Teatro Municipal.
Recém-saído da adolescência, e descobrindo novas virtudes, ele é um dos maiores pianistas da atualidade, como fica claro até num CD desigual como esse.

Disco: Evgeny Kissin
Joseph Haydn: Sonatas Hob. 30 e 52
Franz Schubert: Sonata D. 784 e Marcha Milliar
Lançamento: CD Sony Classical

Texto Anterior: 'Trailer ao vivo' chega aos cinemas de SP
Próximo Texto: Marcos Rey é ainda o mais votado
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.